[dropcap]E[/dropcap]u Sou Mais Eu é aquele velho filme da pessoa revivendo sua adolescência enquanto analisa o seu “eu” atual e o que deixou para trás entre esses dois momentos. Geralmente são aqueles valores que se perdem, as amizades significativas, etc.. No entanto, a tentativa aqui é reaver mesmo o nosso “eu”, aquele “eu” estranho que foi desmoralizado na escola e acabou se escondendo por trás de uma máscara de auto-suficiência que, como todo adulto sabe, é só um instrumento para se auto-torturar.
A heroína é Camilla, interpretada pela “youtuber”/atriz/cantora/etc. Kéfera Buchmann, o que significa muito para a história. Kéfera começou no rede de vídeos logo que ele começou a surgir… pouco depois da banda larga. E tudo isso que hoje é lugar-comum, na época deu uma acelerada no surgimento de sub-celebridades e principalmente, na descoberta de novos talentos ofuscados pela estrutura midiática do sucesso. Os canais de mídias sociais na internet abriram um leque de possibilidades para todos os estranhos mostrarem sua personalidade, o que aumentou a diversidade do que conhecíamos como talento.
Camilla surge no filme como uma cantora pop, finalizando seu último clipe de sucesso baseado em sua persona empoderada. Os roteiristas L.G. Bayão e Angélica Lopes conseguem unir a visão de sucesso de pessoas como Anitta (mais um sintoma do que comentei no parágrafo anterior) com a postura muitas vezes desagradável de pessoas que atingiram a fama muito cedo. Não se trata de uma crítica direta a um artista em específico, mas uma demonstração muito eficaz desse problema, de nos perdermos no processo de construção de nossas carreiras. E se isso já é problemático para nós, meros mortais, a questão da fama apenas amplifica isso.
Daí surge aquele “plaft pluft” iniciado pela aparição de uma fã obsessiva que faz Camilla voltar para 2004, época do Orkut, do disk-player e de hits da época (novos ou velhos), como o da banda Raimundos (“A Mais Pedida”). Um parênteses: essa fã maluca é interpretada pela preparadora de elenco do filme, Estrela Straus, cujo triunfo no filme não deve ser esquecido. Ela utiliza o método Lee Strasberg, mas nas palavras de Kéfera na coletiva de imprensa, “o mais marcante foi o treinamento deles, a escolha de animais para emocionalmente se conectarem e aos poucos acontecer a humanização de seus personagens”. Kéfera escolheu o esquilo e o leão em suas “personas” de Camilla antes e depois da fama. Bom, independente do método, funcionou.
É comum no Brasil não se dar a devida importância ao preparo do elenco, mas repare como as atuações de Kéfera como Camilla adolescente, João Côrtes como seu amigo leal e esquisito e Drica como seu desafeto são a base afetiva para que nos identifiquemos com a situação daqueles jovens estranhos sofrendo bullying a todo momento por qualquer um da escola. Sem essa base, todo o trabalho de Eu Sou Mais Eu seria apenas mais um De Repente 30 invertido que nos esqueceríamos logo após o fim. Aqui a lembrança é ligeiramente mais perene…
Desenvolvendo essa história de reconexão com o passado da velha maneira clichê em que o protagonista tenta achar a fórmula mágica para conseguir voltar tudo ao normal, a direção de Pedro Amorim é competente do começo ao fim em não deixar a peteca dramática cair em momento algum, mantendo o filme sempre na fina camada de realismo em torno da situação fantástica. Por exemplo, a mudança de look de Camilla no colégio não é absurda o suficiente para jogarmos nossa suspensão de descrença no lixo, nem a esquisitice de seu amigo Cabelo (Côrtes) é grande o suficiente para que não percebamos que sua ambição artística mais alternativa é o que o torna assim. Muitas vezes o filme lembra de leve o clássico jovem de Laís Bodanzky, As Melhores Coisas do Mundo, embora em um formato obviamente mais comercial.
Sempre em filmes com histórias desse tipo a maior preocupação sobre a qualidade do conjunto recai no terceiro ato, onde, ou o envolvimento do personagem com aquela situação funciona de vez, ou não. E confesso que essa era a minha constante preocupação conforme o filme se dirigia para seu ponto de virada. No entanto, pude respirar aliviado quando percebi que o desfecho já havia sido pavimentado com carinho suficiente para que, quando surgisse esse momento previsível e esperado, ele não se sujasse com os velhos maniqueísmos do gênero. O final então soa natural, necessário e catártico na medida certa; sem exageros.
Pecando acima do aceitável talvez apenas em sua trilha sonora ocasional, que atribuiu leveza e trivialidade demais para um filme feito com tanto esmero, Eu Sou Mais Eu é um trabalho coeso, bem produzido e bem aproveitado no seu momento atual. Ele tem coisas importantes a dizer sobre fama e bullying e as diz da maneira mais simples possível. Por um lado, simples demais, deixando perguntas no ar, por outro, como não são perguntas ruins, abrem um diálogo interessante e saudável.
Bônus: há várias músicas icônicas, que eram sucesso na época, tocadas no filme. Espalhadas pelas cenas, elas colorem momentos e marcam a época. Mas a melhor delas é cantada pela própria Kéfera e vira a síntese da história já nos créditos finais. Uma ótima pedida musical essa seleção.
“Eu Sou Mais Eu” (Bra, 2019), escrito por L.G. Bayão e Angélica Lopes, dirigido por Pedro Amorim, com Kéfera Buchmann, Giovanna Lancellotti, João Côrtes e Estrela Straus.