É uma verdadeira armadilha escrever sobre Ficção Americana. Por um lado é possível cometer uma injustiça com o filme julgando-o como um produto de qualquer tipo de expectativa criada pela sinopse, trailer e até pelo começo. Por outro, fugir disso pode confirmar exatamente aquilo tudo que o filme quer dizer em termos de mensagem.
Portanto, diga o que disser, Ficção Americana está além de qualquer esforço para ser julgado. Talvez esse paradoxo seja o que move o filme. Aquela ideia que parece ser o ponto de origem da história toda, mas que vai ganhando contornos, personagens, possibilidades e reviravoltas que criam um cenário onde será possível discutir mais amplamente essa ideia.
A ideia é a desse escritor “Monk” (Jeffrey Right), que depois de ser afastado das aulas na faculdade, acaba ficando preso dentro de um drama familiar que o próprio se mantinha afastado (mais do que deveria). Em meio a esse fracasso emocional e uma carreira de escritor que não decola como ele gostaria, decide fazer aquilo que muita gente parece só querer dele: um livro de negro.
Fugindo da ideia de carregar suas obras com sua etnia, “Monk” é acusado por seu empresário e suas editoras como sendo “pouco negro”. O que o move a escrever um livro “bastante negro”. Uma ideia que começa como uma piada para esfregar na cara de um sistema racista toda sua hipocrisia, mas algumas centenas de milhares de dólares depois, faz com que ele embarque de cabeça nesse pseudônimo que ainda vem com um “background” de ser um fugitivo da justiça para deixar todo mundo mais impressionado com toda “veracidade”.
Mas não estamos falando de uma comédia onde um escritor se mete em várias enrascadas por fingir ser outra pessoa, a sutileza de Ficção Americana é tamanha que é difícil até saber se está realmente vendo uma comédia ou apenas um drama bem-humorado. É claro, sem pesar nesse drama, já que a discussão sobre o uso dos esteriótipos com verdades ainda é o foco do filme. Do contrário, seria só um filme que se deixaria levar, justamente, por aquilo que o personagem está defendendo durante todo tempo.
Parece complicado de seguir em frente, mas não é. O roteiro de Cord Jefferson, que adapta o livro “Erasure” de Percival Everett, opta sempre por caminhos simples e cenas que se completam dentro delas mesmas, permitindo que isso crie uma trama maior, mas nunca se deixe levar por um melodrama com surpresas ou tensões maiores. O filme corre leve, mesmo discutindo problemas grandes, e conta essas duas histórias ao mesmo tempo, mas sempre com espaço para ela ser sentida e entendida. O que talvez, por outro lado, se transforme em um problema.
É difícil sentir os dois “Monks” se entrelaçando realmente. O protagonista que lida com sua família e seus dramas, parece nunca atingir o seu lado escritor metido nessa fraude divertida. Como se a busca da trama por esse drama familiar que foge do “muito negro” em termos de esteriótipo racista, seja um presente para o próprio autor, já que ele está lá do outro lado, fingindo ser um fugitivo da justiça, mas, com certeza, iria preferir contar a outra história.
Essa mistura entre impressões dos personagens e metalinguagem também move o filme para lugares interessantes, inteligentes e cheios de significados. Absolutamente qualquer conversa entre os envolvidos nessa história do livro “Fuck” (o do pseudônimo) e também sobre literatura, são enormes pérolas que se divertem tentando olhar para o mundo ao seu redor com um olhar cínico e ácido, mas completamente poderoso. E verdadeiro.
Uma verdade dolorida e que tem tantos lados e “certezas” que fará os interessados em arte perderem horas e mais horas pensando sobre o assunto. Talvez o melhor de Ficção Americana esteja neste lugar satírico e que, no final das contas, soa pouco explorado. Afinal, o objetivo metalinguístico do filme talvez não seja permitir que essa “comédia” se deixe ser vista como mais uma possibilidade de cair no clichê. Mas é impossível não imaginar o quanto esse clichê fosse ser divertido.
Não que o resto da história não seja, principalmente por ser uma história sobre uma família negra que foge dos esteriótipos que o próprio personagem faz de tudo para ofender. Então isso não quer dizer que ninguém prefira o esteriótipo diante da realidade… só que… bom… vocês entenderam. Está bom do jeito que está! Pronto!
Voltando ao filme. Diante do roteiro incrível e de diálogos precisos e capazes de criar situações que pesam nas nossas cabeças por dias, Jeffrey Wright é sempre espetacular e cria uma credibilidade gigante a qualquer coisa que faz. Aproveitando de uma sutileza enorme para transformar esse personagem durante o filme, mas sem nunca perder a essência inicial do “Monk” lá do começo do filme discutindo com sua aluna e enfrentando o diretor de sua universidade. Talvez chegando em um lugar que o próprio personagem não se deixa achar confortável, mas, ainda assim, é o que é e ele lida com isso.
Wright só não rouba a cena do irmão vivido por Sterling K. Brown, que sequestra o filme para ele cada vez que surge na tela. São poucas vezes, mas todas vindas com uma provocação humana e emocional que faz o filme (e o protagonista) repensar suas certezas.
Mas falando em certezas, mesmo com a direção hesitante e pouco inspirada de Jefferson em seu primeiro filme, sua capacidade de deixar o roteiro respirar é incrível e faz o filme funcionar bem demais. O suficiente talvez para fazer de Ficção Americana um dos filmes obrigatórios da temporada e até dos últimos anos, principalmente se você estiver disposto a discutir o mundo sob uma ótica diferente e desafiadora.
“American Fiction” (EUA, 2023); escrito e dirigido por Cord Jefferson, a partir do livro de Percival Everett; com Jeffrey Wright, Tracee Ellis Ross, John Ortiz, Erika Alexander, Leslie Uggams, Adam Brody, Issa Rae, Sterling K. Brown e Myra Lucretia Taylor.