Ford vs Ferrari narra uma corrida histórica, mas seu pano de fundo é um conto de fadas americano com o objetivo de levantar questões controversas a respeito da postura dos “homens de verdade” das décadas pós-guerra. A principal das questões: a envergadura moral de um Henry Ford II em levantar a bandeira do industrialista orgulhoso, quando tudo o que lhe resta dos tempos gloriosos e do trabalho duro de seu avô são milhões de dólares e influência herdados e empacotados na forma de uma diretoria pronta para concordar com seu chefe apenas por ser seu chefe.
Para quem trabalha na era da informação, onde boas ideias podem vir de qualquer lugar e nacionalidade, chega a ser risível a idolatria à hierarquia e nacionalismo dos anos 60. Quando a própria geração de adolescentes já começava a se dar conta da mudança de valores no ar. O filme dirigido por James Mangold absorve essa atmosfera nos apresentando a ela primeiro, junto de seus principais personagens e conflitos, para depois nos aprofundar nos aspectos históricos da aventura.
Carroll Shelby é um piloto de corrida de automóveis de sucesso, o primeiro americano a vencer uma competição de resistência francesa e a se aposentar por problemas de saúde. Shelby se enxerga em seu amigo Ken Miles, um mecânico talentoso que entende de forma quase instintiva a dinâmica na pista quando participa como um piloto quase anônimo. Ambos representam esse lado ainda amador e nada glamouroso dos pilotos de corrida nos anos 60, muito diferente do que vemos hoje na Fórmula 1. E ambos são a versão artística que bate de frente com a indústria focada em produtividade e lucro de Henry Ford.
O roteiro escrito a seis mãos dedica boa parte do tempo em conseguir nos convencer de que esses dois mundos podem trabalhar juntos para ganhar do símbolo de velocidade entre os jovens, a quase sempre vitoriosa empresa de automóveis de Enzo Ferrari, um italiano raiz que coordena, diferente de Ford, não uma linha de produção em que a repetição transforma mediocridade em produto, mas sim uma equipe de artesãos, cada um dedicado a fazer a melhor peça de um automóvel para que, em conjunto, reine o estado da arte.
O resultado dessa história com detalhes demais para dar conta é um filme com peças sobressalentes, mas que na média oferece tensão e emoção, graças principalmente, além da direção, ao seu elenco.
Matt Damon vive Shelby com a expressão enigmática de quem pensa muito mais do que de fato diz, mantendo em equilíbrio a rixa inevitável entre homens de terno arrogantes e a equipe dos homens de verdade que fazem o serviço de fato. Seu calcanhar de Aquiles é Ken Miles, com seu temperamento explosivo que se torna justificável frente a tamanho atrevimento cego dos homens do dinheiro. Miles é uma criatura autêntica cujo único intérprete com a energia e a capacidade de recriar até seu sotaque bem específico é Christian Bale (e a ironia da vida é que Bale também é conhecido nos bastidores como sendo uma criatura difícil de se lidar nas filmagens).
James Mangold estabelece essa dinâmica entre idas e vindas do roteiro em um nível morno, porque nós sabemos que isso tudo vai dar na tal corrida de resistência da França, o “24 Les Mans”, onde competidores devem correr pela pista por 24 horas. Toda a atmosfera dos vilões impessoais contra os homens de talento se paga quando os carros vão para a pista da corrida de 1966, materializada com computação e a fotografia de Phedon Papamichael, que nos faz pensar em como o sol na França cria padrões de cores muito mais ricas e humanas do que o eterno meio-dia do deserto americano. Nesse momento Mangold pode largar o freio de mão, pois praticamente tudo funciona, e Christian Bale pode finalmente homenagear os anônimos como Ken Miller, que fazem a coisa acontecer, independente das tramas que giram em torno de poder e dinheiro.
Ford vs Ferrari possui já um público-alvo declarado, como os fãs de corrida e de automóveis, mas não fãs de filmes de ação como Velozes e Furiosos, que giram muito mais em torno da existência da ação do que os motivos por trás dela. James Mangold entende que qualquer cena tensa na pista envolvendo automóveis e pilotos só possui sentido se houver algo mais real em jogo do que planos de dominação mundial ou qualquer outra besteira que colocam nesses filmes onde pensar é opcional.
Um filme que glorifica elementos muito mais pessoais e por isso mesmo mais valiosos, como a integridade, a ousadia e o talento. Elementos que nenhum seguidor da filosofia Ford sequer irá notar a existência.
“Ford v Ferrari” (EUA/Fra, 2019), escrito por Jez Butterworth, John-Henry Butterworth e Jason Keller, dirigido por James Mangold, com Christian Bale, Matt Damon e Caitriona Balfe.