A estreia de Dev Patel por trás das câmeras, Fúria Primitiva, é mais do que uma cópia indiana de John Wick. Por mais que quase parta de uma mesma ideia, ou talvez premissa seja uma expressão melhor, são precisos alguns segundos de tela para qualquer um perceber o quanto essa afirmação é fácil de constatar.
Essa semelhança está nos dois lugares óbvios de quem der de cara com Fúria Primitiva, uma trama sobre um homem que busca sua vingança e precisa enfrentar um exército de capangas enquanto bate e apanha quase na mesma proporção. Mas se John Wick é técnico, Fúria Primitiva é selvagem e luta em um lugar onde o significado de suas ações extrapolam o pessoal. Como se representassem uma nação mais do que apenas uma busca por justiça.
Patel também assina o roteiro em parceria com Paul Angunawela e John Collee e ele parece interessado em preencher essa ideia com uma substância que vai tomando um espaço vazio que poderia ser facilmente deixado de lado em filmes semelhantes. Patel busca não só as cores, cheiros e inspirações dessa Índia, como faz com que isso seja importante para colocar seu filme em uma prateleira diferente.
Seu Fúria Primitiva vai na deidade macaco Hanuman para entender o quanto é importante ter que lidar com seus voos mais altos. Quase como um Ícaro hindu, o herói mitológico come o sol achando que ele é uma manga, o que faz com que sua queda seja maior do que sua vontade de conquistar o mundo. O personagem sem nome de Patel também acha que é possível ir além de suas atribuições para cometer sua vingança, como se sua força de vontade e raiva fossem suficientes, mas é preciso cair para levantar.
A direção de Patel esconde isso. Primeiro ao construir esse mundo temperado à curry e especiarias, onde o herói veste uma máscara de macaco para lutar no submundo, mas interpreta por lá essa espécie de Hanuman que desce dia após dia até a lona suja do ringue. Um aviso que o próprio personagem não enxerga ao tentar ultrapassar os muros dessa sociedade em busca do fim do policial que destruiu sua infância. Como se tivesse que esconder à vista nessa sociedade onde as camadas sociais só significam mais poder para quem já o tem. O herói só enxerga isso tarde demais e Patel faz com que ele sobreviva em uma sequência onde não há glamour ou segurança, mas uma vingança movida só pelo coração, não pela razão.
A câmera de Patel nesse primeiro momento é tão instável e violenta quanto o personagem, parece correr com ele através desses corredores e ruas, sem nunca conseguir focar ou ter a certeza de que é possível ir além da improvisação. Um visual cru e visceral, mexido e sem nunca ter o foco necessário para entender sua importância como instrumento de mudança. Como se Patel entendesse que o primeiro momento de seu herói épico é falho e apenas o resultado desesperado da vontade de mudar o mundo. Entendendo que alcançar o sol é apenas o começo, não o final.
Fúria Primitiva vai aos poucos abrindo essas portas que misturam a porradaria com cultura e religião hindu. A crítica social também está lá, tudo misturado em um caldeirão onde o protagonista terá que descobrir sua posição dentro daquilo que dita as regras de ambos os mundos, para enfrentar as instâncias que usam seu poder e influência para dominar aqueles que não tem poder para mudar suas vidas. Ao enfrentar o policial, o faz por saber que ele é apenas o braço desse poder religioso imposto por essa figura messiânica que perambula pela Índia como se fosse um enviado divino. Justiça e religião escondidos por uma corrupção que espreme o resto da população para longe desse prédio que representa, quanto mais alto o andar, mais a distância com o povo indiano.
Para entender sua importância real, o herói de Patel precisa viver entre hijras, devotos religiosos que estão em um aspecto onde o masculino e o feminino convivem em harmonia. Onde as divindades dividem esse mesmo corpo e demonstram para o protagonista o quanto o mais importante é usar a razão e a importância de sua vingança como símbolo de uma luta que é maior que ele.
É lógico que o roteiro de Patel é sobre essa volta por cima com direito até uma montagem de treino, mas esse segundo momento do diretor Patel é, justamente, aquele onde ele entender que seu herói agora está no controle, junto com sua câmera. Não existe mais espaço para uma direção improvisada e um visual descontrolado, agora tudo é como um balé de violência e precisão. A aparição dos hijras no meio da batalha é como se o moderno fosse redesenhado pelo clássico em uma dança que nunca perde o controle. Talvez agora sim essa espécie de John Wick indiano, já que o protagonista não está mais preso apenas a sua vontade, mas sim tem tudo planejado e sabe o quanto precisa seguir aquele caminho, mesmo que a manga continue sendo o sol.
Patel, por fim, não tem medo de criar esse conteúdo inteiro em um filme que poderia ser só uma aventura de porrada, sabe que é isso que fará de Fúria Primitiva algo único. Seu trabalho como diretor é impressionante, principalmente por ser sua primeira assinatura, mas também é o caso de reconhecer o quanto sua intenção nunca, nem por um segundo sequer, é fazer um filme qualquer, mas sim o objetivo claro de olhar para essa Índia cheia de mitos, lendas, violência, cores e temperos e entender que é possível fazer disso tudo um filme de ação com personalidade, profundidade e vontade de ser lembrado por um bom tempo depois do seu final. Afinal, as lendas e mitos precisam ser contados para nunca serem esquecidos.
“Monkey Man” (Ind/EUA/Can/Sing, 2024); escrito por Dev Patel, Paul Angunawela e John Collee; dirigido por Dev Patel; com Dev Patel, Pitobash, Sikandar Kher, Sobhita Dhulipala, Makrand Despande, Aswini Kalsekar e Vipin Sharma