Grandes figuras históricas sempre merecem grandes filmes. O cinema parece ter essa obrigação para com elas, ainda que isso signifique buscar aquele momento ou situação que crie um protagonista melhor do que ele realmente foi. Getúlio busca isso, humaniza o ditador, mas o faz com a consciência limpa de um belíssimo trabalho à altura de sua importância.
Um esforço que tem início com uma narração que resume nas próprias palavras do presidente (vivido por Tony Ramos) os anos em que ele passou no poder, como ditador e sem medir esforços para imprimir na nação aquilo que ele achava o certo a ser feito. Palavras que soam fortes, fascistas, e até amendrotadoras, mas que encontram o olhar perdido e frágil de um presidente em seus últimos dias, espremido contra a parede (talvez) pelos próprios pecados. E sem isso, Getúlio seria apenas mais um empreendimento pífio de contar uma tentativa partidária de contar uma biografia política.
Escolhas perfeitas dentro da única possibilidade que o filme teria de funcionar. Se tentasse contar a história do presidente muito provavelmente encalharia nos mesmo erros que o cinema brasileiro recente já o fez, tanto com o fraco Lula, O Filho do Brasil quanto no monótono Gonzaga: De pai para Filho. Se em contrapartida não tivesse a sensibilidade de que “defender” a figura ou tentar “entender” suas ações prévias e ditatoriais então criaria mais discussão ideológica do que permitisse que o filme fosse simplesmente apreciado.
Getúlio então se coloca dentro dessas últimas duas semanas de vida do Presidente. Do momento em que seu maior oposicionista, o jornalista Carlos Lacerda (Alexandre Borges) sofre um atentado em frente sua casa, no dia 05 de agosto de 1954, até o fatídico tiro que “tirou o presidente da vida e o colocou na história” no dia 25 do mesmo mes. Um roteiro escrito pelo próprio diretor João Jardim, em parceria com Tereza Frota e George Moura, mais interessado nas intrigas palacianas que percorreram os corredor do Catete do que em algum tipo de ação ou suspense. Apenas parte da história, até por que todos sabem o final.
E entender esse final talvez seja o que mais faz de Getúlio um momento obrigatório do cinema nacional. E isso com você achando ou não que naquele momento essa enorme figura política era ou não a vítima dos erros e decisões de todos que estavam à sua volta. Senão para concordar, pelo menos para fazer com que o espectador venha a se interessar para saber o que realmente aconteceu. Julgar os fatos não é o esforço de Jardim (ainda que o faça), mas sim contar uma história que faça sentido. E o melhor, com um baita elenco interessante e ainda um esforço visual que vale cada plano.
De um lado um fenomenal trabalho da direção de fotografia do experiente Walter Carvalho, que repete um daqueles grandes momentos de sua carreira, misturando um pouco da delicadeza de Central do Brasil com o olhar poderoso de seus trabalhos em Abril Despedaçado, Céu de Suely e Baixio das Bestas. Carvalho tem então a sensibilidade de ser simples e objetivo quando é necessário, mas “diminuir” e “aumentar” o Vargas de Ramos com plongees e contra-plongees (sozinho em uma enorme sala e “criando um monstro” enquanto decide seu futuro, e consequentemente sua morte). O diretor de fotografia parece então ser a opção perfeita para celebrar o ótimo trabalho de Jardim.
Um vigor visual que procura o suor escorrendo pela lateral na face de um presidente prevendo toda tragédia desse tiro que “acertou o não pé de seu rival, mas também as costas de seu governo”, ou da lágrima que enche os olhos diante do inevetável. Que se permite olhar por trás de uma das curvas do Palácio do Catete enquanto um grupo de ministros dita o futuro do protagonista, escondidos pela sombra, ou que não se cansa de encarar as costas arqueadas pelo cansaço de Vargas enquanto conversa com a filha. Um visual limpo e sem aparas (ok, com um pouco mais do lindo candelabro do que se espera) e que está ali não só para contar a história, mas para fazê-lo com significado e beleza.
Equilíbrio que se estende não só para a ótima atuação de Tony Ramos, que infelizmente falha um pouco na hora de incorporar o sotaque sulista do personagem (que vai e volta sem muito empolgação), mas em compensação se sente a vontade nos trejeitos do protagonista, do andar aos gestos, seja no olhar firme ou na fragilidade. Lógico que tudo isso ganha mais força ainda com uma caracterização interessante, mas é fácil acreditar que mesmo sem nem um pingo de maquiagem Ramos ainda encarnaria um ótimo Getúlio Vargas.
Isso, com a certeza e a responsabilidade de estar encarnando uma das maiores figuras da história do Brasil, um esforço que fica tanto a altura de sua atuação quanto à da importância real do protagonista. Um filme que faz por merecer o compromisso de levar para as tela um dos momentos mais relevantes da história política do país.
“Getúlio” (Bra, 2014), escrito por Tereza Frota, João Jardim e George Moura, dirigido por João Jardim, com Tony Ramos, Drica Moraes, Thiago Justino, Clarisse Abujamra e Alexandre Borges