Era uma vez uma atriz com 50 anos de carreira e mais de 80 de idade. Ela é reconhecida por todos que tiveram o prazer de testemunhar seu trabalho. A crítica sempre é positiva a respeito de suas peças. E a despeito de tudo isso, Górgona começa como se estivéssemos diante de uma despedida triste e solitária.
Isso porque o público de teatro, como se sabe, não vem sendo dos melhores. Atores e atrizes de sucesso outrora hoje são desconhecidos da grande massa, conseguindo apenas uma coleção de admiradores, esses sim, fiéis até a morte, como podemos ver na fila de fãs após o espetáculo ser muito próximo da totalidade de público daquela noite.
O documentário ficcional de Pedro Jezler e Fábio Furtado é uma viagem lírica que faz passar sua uma hora e dezessete minutos em um instante. Uma vez que você é fisgado para trás dos palcos não há volta. Querer descobrir mais e mais do que ocorre nos bastidores se torna uma obsessão. Acompanhar a intimidade e a cumplicidade da trupe de artistas e profissionais por trás da última peça de Maria Alice Vergueiro se torna uma honra e uma vergonha, tudo ao mesmo tempo.
Deveriam as artes cênicas serem recompensadas entregando uma última dívida e nenhum grande público para os que insistem em viver o sonho? Essa questão reverbera o tempo todo na nossa mente conforme aos poucos fazemos parte daquele grupo e seu ritual irreverente.
E por falar em irreverente, a sexualidade no filme não é sensual, mas necessária para se continuar vivo. As observações de Maria Vergueiro sobre o órgão genital feminino, se em um momento parece de mau gosto, aos poucos vamos entendendo a metáfora. E também aos poucos vamos entendendo que as maneiras que ela se comunica hoje em dia, esquecendo sempre a fala e não conseguindo deixar de tremer as mãos quando chega ao teatro, é tudo o que restou desse ser humano. Que, mesmo assim, é feliz.
Seus companheiros parecem ter a cumplicidade maior de todas, pois nem questionam as decisões da mulher na cadeira de rodas. Ouvem com atenção, mas sem mais aquele respeito que distancia as pessoas, mas com a compreensão de amigos. Eles estão acompanhando provavemente a última fase dessa grande artista, e não é bonito, mas isso não os permite sentirem nem pena nem vergonha. O que eles sentem é simplesmente a amizade incondicional que torna os laços que foram feitos entre as décadas de trabalho ainda mais fortes. Eles são uma extensão do corpo da atriz que não consegue mais subir escadas.
Ao mesmo tempo, Maria Vergueiro não se contém em não dizer certas coisas. Sua vida de negócios parece ser totalmente revelada, aos poucos, no filme. E descobrimos que ela é péssima em gerir seus negócios, mas íntegra ao mesmo tempo. E está muito bem em seguir tendo o prazer de arriscar o que não tem nessa empreitada em direção à aposentadoria eterna. Ela também não está cabisbaixa, e a postura dos cineastas em fazer esse filme não foi em momento algum tornar isso uma homenagem quase póstuma, mas sim uma redescoberta dos caminhos que o teatro e seus artistas têm tomado ultimamente.
Não há nada de novo sobre como a arte é (des)valorizada no Brasil, mas apenas a junção dos fatos com os sonhos em palco. É para mostrar que ninguém está com a cabeça na lua, mas que por serem artistas, sonhar é vital para continuarem fazendo o que fazem. E assim é Maria Vergueiro, uma anônima hoje em dia, como tantas outras e outros, a seguir adiante nessa arte cada vez mais reservada a recintos sujos e mal iluminados. Há até certo charme decadente no ar.
“Idem” (Brasil, 2018), escrito e dirigido por Pedro Jezler, Fábio Furtado, com Maria Alice Vergueiro, Pascoal Da Conceicao, Danilo Grangheia.