Definir o significado de documentário é mais difícil do que parece. Pesco num site de razoável credibilidade: “trata-se de uma produção artística, via de regra um filme, não-ficcional, que se caracteriza principalmente pelo compromisso da exploração da realidade”. Sei… Procuro uma explicação mais técnica, com jeitão de dicionário e medo de academicismos, e encontro isso: “a incessante busca por uma definição para ‘documentário’ esbarra no universo da ficção, fazendo com que os limites estabelecidos entre os gêneros sejam quase imperceptíveis. O documentário é o tratamento criativo da realidade.”
Entendeu? Nem eu.
Nessa trilha pela mata da pesquisa, leio que a grande reportagem é um “gênero jornalístico que consiste na composição de uma série de informações relativas a um acontecimento particular, da atualidade, ou a um fenômeno da sociedade, tratando os assuntos em profundidade, sob várias facetas, podendo ter o formato semelhante ao de um filme. Não há espaço para a ficção na grande reportagem.”
Paro, respiro fundo, penso, absorvo, rumino e continuo: “enquanto a grande reportagem necessita de um repórter/narrador, incumbido de relatar os acontecimentos para o público, no documentário não é obrigatória sua presença”.
Corre aqui, GloboNews: se entendi bem, grande reportagem é uma coisa, documentário é outra. Podem até se parecer, se esbarrar. Talvez sejam primos distantes, vai saber.
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Noite passada, tive um pesadelo terrível. Nele, um streaming me atormentava com anúncios sobre a estreia do Novo Documentário. Para incrementar mais o poder de convencimento, usavam o termo “série documental”. Como uma pizza dividida pela família em partes iguais para evitar brigas entre irmãos, fatiaram em cinco episódios a produção sobre aquele grande acontecimento. Aquele mesmo!, você sabe do que estou falando. Então, funciona assim: na série, cada episódio aborda um aspecto daquele grande acontecimento, entrevistando alguns envolvidos e também especialistas com Pós-Graduação em Lero-Lero, Mestrado em Oratória Avançada na Frente das Câmeras e Doutorado em Carteirada. Gaiatos contam como sentiram na pele aquele grande acontecimento. Renomados profissionais explicam com argumentos supostamente científicos por que aquilo aconteceu. Ao longo dos episódios, tem gente chorando, claro que tem gente chorando!, porque lágrimas cativam a audiência, diria o velho sábio. Nesse pesadelo terrível, eu era bombardeado com “você já assistiu o Novo Documentário?” a todo tempo, a toda hora, nos grupos de WhatsApp, no barzinho, na academia, na fila do mercado, na família, na cama, no trabalho. Me senti pressionado, esperei o fim de semana do sonho, dei play e me assustei. O Novo Documentário era uma grande reportagem, que poderia ser resumida em uma hora e meia, mas precisou ser fatiada como uma pizza, deixando um gosto sem graça de frango com catupiry em quem se dispôs a assistir. O Novo Documentário não era ruim, mas o Novo Documentário não era um documentário, era uma grande reportagem. Meio cansativa, é verdade.
Acordei assustado, suando, a dez minutos do choro do despertador nas primeiras horas da manhã.
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Beleza, mas tem problema em vender uma grande reportagem como se fosse documentário? Volta e meia, me pergunto: essa “série documental” (que nome bonito, né?) não é uma reportagem típica das revistas eletrônicas de fim de domingo (outro nomão bonito, hein?) vendida em outra embalagem?

Não vou mentir, já dei “migué” e fingi ter conhecimentos profundos sobre assuntos desconhecidos ao me candidatar em umas vagas de emprego por aí. Também já fingi não ser um excêntrico para conquistar gente por ali. Tem quem esconda uns defeitos do carro na hora da venda. Conheço uma vendedora ambulante que adjetiva suas roupas como “de marca”, mas são réplicas, réplicas bem-feitas, mas réplicas. É normal, é comum, é da vida, é o jogo jogado. Tentamos nos vender um pouco além, um pouco acima, nos valorizando, nos mostrando um pouquinho melhor do que somos neste ou naquele aspecto.
Ainda assim, grande reportagem não é documentário. Lamento informar.
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Você está terminando de ler um ensaio ou uma crônica? Ou um artigo de opinião? Ou uma coluna? Ou um textinho mixuruca sem resposta para nada e agora sente que caiu num golpe?
E aquele vídeo sobre o filme que estreou ontem, com o seu Influencer Cinéfilo favorito falando sobre as atuações, a direção, a fotografia. Não parece apenas o detalhamento da sinopse vendido como crítica? Quantas descrições de filmes e séries se camuflam de resenhas?
Na literatura, qualquer obra mais extensa é chamada de romance, mesmo que não seja. Porque esse nome é mais bonito e vende mais.
Tem produtor de conteúdo se fingindo de jornalista. Tem influenciador digital se disfarçando de relevante. Tem famoso da internet fantasiado de ator. Tem entretenimento se autointitulando jornalismo. Tem publicidade se passando por análise isenta e criteriosa.
Posso ser apegado demais à técnica, à precisão e às coisas como são. Mas andam chamando de documentário o que nem é documentário. Pode reparar, depois não diga que não avisei.