A língua portuguesa é, provavelmente, uma das coisas mais belas do mundo. Com ela é possível ser violenta, dolorosa e visceral, mas, ao mesmo tempo, delicada, regionalista, árida e com uma prosa que se mistura com poesia na curva de um ponto final. Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, um dos livros mais importantes da literatura brasileira e mundial, é tudo isso. Grande Sertão, adaptação de Guel Arraes, obviamente não é tudo isso, mas se esforça em ser o suficiente para reafirmar a importância do material original.
O texto de Guel Arraes e Jorge Furtado dita o filme, como não poderia deixar de ser, afinal, perder essa combinação genial de palavras que mudou a literatura do país, seria burrice. A diversão de Grande Sertão então está nesse lugar de repetir o texto original encravado nesse novo mundo que desvia o olhar do velho sertão e foca nesse futuro meio apocalíptico onde o tudo agora está dentro desses muros. Esse lugar onde as casas se sobrepõe e a pobreza parece ser a única opção para qualquer um do lugar.
Talvez um cuidado melhor com esse conceito fizesse de Grande Sertão algo mais parecido com o Romeu e Julieta de Baz Luhrmmann (aquele com o Leonardo Di Caprio), mas o que sobra aqui é um visual que se afasta da realidade de um jeito menos interessante do que poderia, não recorre à ideia original com muita facilidade e parece simplesmente sem dinheiro para algo melhor em termos técnicos. Um detalhe que seria um problema enorme se não fosse o resto.
O “resto” passa, tanto por um trabalho inspirado de Arraes e Furtado no texto, quanto por um elenco que faz valer até o efeito especial mais tosco. O diretor parece disposto a fazer, tanta a cena mais eficiente e que melhor valoriza seu roteiro, como as piores decisões, principalmente nas cenas de ação ruins. Mas tudo isso feito através de atores que estão absolutamente perdidos (no melhor dos sentidos!) na ideia do diretor.
A história é a mesma, e para quem esteve por fora de uma das coisas mais importantes do Brasil no século 20, acompanha Riobaldo (Caio Blat), um professor desse sertão que acaba vendo sua vida rumar diretamente para dentro da gangue de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi), movido por uma aparente paixão por Diadorim (Luísa Arraes), um dos “jagunços” mais perigosos do bando.
É lógico que a presença de uma atriz no papel do personagem poderia “dar o spoiler” do material original, mas esperamos que em 2024 todo mundo saiba dessa reviravolta. Portanto, nem isso é um problema e muito menos a construção da história para a tela grande. As 500 e muitas páginas do original precisam encaixar no pouco mais de 110 minutos de filme, portanto é preciso adaptar, e Arraes e Furtado fazem um trabalho absolutamente respeitoso, interessante e poderoso.
A impressão durante todo tempo é de que o Grande Sertão de Guimarães Rosa está ali na tela, mesmo com os cortes e “preenchimentos”. É impossível apontar com exatidão onde o texto original dá lugar às ideias da dupla de roteiristas se você não tiver decorado o material de Guimarães Rosa. Por isso, Grande Sertão (o filme) está sempre nesse lugar onde o prazer de escutar o material original saindo da boca do elenco é inenarrável para qualquer pessoa que aprecia a nossa língua e a criatividade de um dos maiores gênios que passaram por ela.
Arraes mantém o clima do livro, mesmo em um cenário tão diferente, o que, com certeza, ajuda o elenco a fazer um trabalho tão bom. É óbvio que em certos momentos é preciso se deixar por uma espécie de exagero teatral para absorver todo excelente trabalho dos atores e atrizes, mas isso parece ser algo que deixa ainda a experiência mais épica e diferente para quem talvez espere algo, digamos assim, “menos excêntrico”. Mas é esse “exagero” que faz do filme algo único.
É também o que permite o espetáculo do elenco. Caio Blat comanda tudo, principalmente em seu grande monólogo para um ouvinte anônimo (como no livro). Arraes não dá pistas, apenas liberdade para o ator liderar a história e gritar o texto original aos quatro cantos daquele mundo e com cada letra de Guimarães Rosa, mas com uma indignação que o coloca no controle dessa história onde a dor de suas decisões é maior do que as conclusões de suas ideias. Tudo se mistura com uma verborragia violenta e dolorida. Em um outro momento, Blat ainda vive um Riobaldo que vai da inocência até a mais profunda aceitação de seu papel como arauto de um caos que controla aquele mundo.
Arraes sabe a importância disso e constrói com Blat essa transformação que é, tanto visual, quanto comportamental. O Riobaldo que acaba a história é uma terceira pessoa, amargurado, apaixonado e sem um futuro para onde ir além daquele de poder narrar suas lembranças como se fosse uma história de amor que é comida pela violência e pela vingança.
Do outro lado dessa equação, acertadamente, Luisa Arraes monta um Diadorim que não se permite ter um gênero tão acimentado. É lógico que isso faz com que certas impressões de Riobaldo fiquem mais complexas, mas é bom levar em conta que a narração do personagem apaixonado se deixa ficar misturada por uma nuvem de insegurança sexual e imposições sociais. Portanto, nem que Diadorim deixasse ainda mais claro sua verdadeira pessoa, Riobaldo não enxergaria. A decisão de Arraes e de sua filha (Luisa) de deixarem essa “discussão” no campo da poesia e da construção narrativa faz um bem gigantesco para o filme.
Uma decisão que ajuda à própria Luisa Arraes, claramente o elo mais fraco da corrente inteira (elenco), mas que consegue manter o interesse pela personagem e até toda tragédia que a rodeia de um jeito que dói de ver e que só deixa uma opção de tragédia a cada passo da personagem. A atriz sabe disso e não deixa isso escapar de suas mãos.
Para o pessoal que assiste Rodrigo Lombardi nas novelas e séries, vai também se surpreender com a qualidade do trabalho do ator. Tanto por casar bem com o personagem que aceita essa casca de líder justo e impecável, quanto pelo esforço do galã de deixar essa aura de violência moldar o líder do bando. Uma certeza de liderar que bate de frente com o caótico Hermógenes de Eduardo Sterblich, que casa completamente bem com o personagem e com seu lado diabólico, místico e que vê na violência e na sobrevivência o único caminho desse ser que destrói completamente tudo ao seu redor. Sterblich parece ter nascido para o personagem e Arraes percebe isso de longe, aproveitando cada frame desse trabalho incrível do ator.
Mas todos esse elogios são pouco. O elenco é perfeito de cabo a rabo. Do Zé Bebelo de Luis Miranda, até qualquer um dos jagunços com meia dúzia ou menos de falas. Como se todos estivessem hipnotizados por essas palavras. Pela prosa poética de Guimarães Rosa. Pela violência agreste de suas linhas e por esse grande sertão que corta o Brasil como o fio de uma peixeira. Guel Arraes apenas comandou com as próprias palavras desse monstro da literatura uma homenagem mais que merecida.
Afinal, Guimarães Rosa e seu Grande Sertão Veredas, assim como o Grande Sertão de Guel Arraes, são feitos para serem sentidos… ou melhor: “Um sentir é do sentente, mas o outro é do sentidor”
“Grande Sertão” (Bra, 2023); escrito por Guel Arraes e Jorge Furtado, a partir do livro de João Guimarães Rosa; dirigido por Guel Arraes; com Caio Blat, Luisa Arraes, Rodrigo Lombardi, Luis Miranda, Mariana Nunes, Lucas Oranmian e Eduardo Sterblitch.