Não é surpresa que depois de divertidas bobagens como Quem Quer Ficar com Mary e Debi & Loide, Peter Farrelly tenha se tornado um grande diretor. Comédia é feita de timming e da capacidade de condensar uma piada em um tempo específico que dê ritmo ao filme. Green Book – O Guia, primeiro filme sem seu irmão Bobby, não é uma comédia, mas tem todo esse timming.
Também não é um drama. Talvez seja os dois, ou, mais precisamente, um road movie que sabe que não existe comédia sem drama e vice versa, simplesmente porque a vida é assim. Green Book é humano, sensível, leve, mesmo enquanto discute um assunto pesado e complexo. E isso não é pouco, já que fazer tudo isso funcionar de modo equilibrado é para poucos.
O filme é escrito pelo próprio Farrelly em parceria com Brian Hayes Currie e Nick Vallelonga que, curiosamente ou não, é filho de Tony “Lip” Vallelonga, que no filme é interpretado por Viggo Mortensen, um “leão de chácara” de Nova York que acaba aceitando um emprego como motorista do pianista Dr. Don Shirley (Mahershala Ali).
Tony Lip é um brutamontes italiano e dá sempre “seu jeito”. O “Doutor” é fino, clássico, excêntrico e negro, o que faz com que essa turnê pelo sul dos Estados Unidos (“Deep South”, aquele onde queimam cruzes nos jardins dos outros) possa ser um perigo real e concreto. Da diferença dessas duas pessoas nasce uma amizade sincera e emocionante.
Green Book é então sobre isso, dois caras aprendendo a viver em um mundo muito maior do que aqueles onde eles viviam. É talvez mais que isso, um filme sobre esses dois caras tendo que enfrentar esse mundo onde a cor da pele ainda era um problema em 1962 (e onde, provavelmente ainda é). Transitando no “mundo branco”, o “Doutor” é sempre respeitado como uma atração, até que o mundo lembra que ele é negro e, com isso, sutilmente, Farrelly cria um filme cheio de socos no estômago que nos tira o ar e substitui por pura indignação.
Esse lado sério e obrigatório não se desvencilha de Green Book, mas convive extremamente bem com um bom humor sutil. Os diálogos entre os protagonistas são deliciosos, as experiências que passam são incríveis e, lógico, é impossível não se apaixonar pela naturalidade quase infantil de Tony Lip. Uma personalidade sincera que esconde a força de alguém que está sempre alguns passos à frente de todos.
Farrelly equilibra sempre os momentos mais pesados, com uma sutileza que se mistura muito bem com essa inocência de Lip, se permitindo ser o alívio bem vindo e nunca deixando a experiência cair em qualquer tipo de dramalhão pesado. Como se não houvesse vontade de discutir um assunto por muito mais tempo do que é necessário para ele ser entendido. Farrelly cria um filme limpo e com tudo no lugar, desde o riso até as lagrimas.
Faz isso também porque sabe que pode confiar na presença de Mortensen e Ali, que não só dão conta do recado, como criam personagens vívidos e que sabem encontrar seu espaço dentro de cada diálogo e cena. Nunca em Green Book os dois disputam um pedaço de tela, muito pelo contrário, a vontade é de vê-los juntos por pelo menos mais algumas horas.
Green Book faz você relaxar e pensar a respeito do mundo que vivemos, mas mais do que isso, fará qualquer um se apaixonar com a mesma empolgação de Tony Lip comendo KFC no Kentucky. Um filme sobre pequenas coisas, mas que, juntas, montam aquilo que a gente entende por felicidade. Seja nas estradas dos Estados Unidos, no prevalecer diante da tristeza de um mundo que não te quer, ou até em uma carta ou companhia em uma ceia de natal, mas mais do que tudo, em uma amizade que te mostra que sempre há espaço para descobrir um novo mundo onde você possa se encaixar.
“Green Book” (EUA, 2018), escrito por Nick Vallelonga, Peter Farrelly e Brian Hayes Currie, dirigido por Peter Farrelly, com Viggo Mortensen, Mahershala Ali e Linda Cardellini.