A violência de Guerra Civil, novo filme de Alex Garland, não vem do terror ou sangue, mas sim da realidade. Como se colocasse a história do filme tão perto do mundo em que vivemos, que é fácil temer aquela esquina que quando cruzada tudo fica para trás e só o que resta é essa situação onde o limite da civilidade é esquecido.
Seria fácil olhar para isso e enxergar uma distopia, mas talvez isso fosse quase uma fuga simplista. Como se tudo parecesse estar perto demais para ser algo que não pudesse acontecer. Mas por trás disso não está um pedido desesperado de socorro ou uma ameaça velada, está apenas uma história forte e verdadeira o suficiente para parecer que poderia acontecer.
O roteiro também é de Garland e o esforço para chegar nesse lugar é perfeito, poderoso, inteligente e desafiador. Não é uma história simples de se contar. Tampouco é uma história que funcionaria sem uma trama que entendesse suas necessidades de não expor simplesmente uma história ou um cenário. É algo quase homeopática, com doses pequenas dessa realidade sendo expostas a cada momento que esses personagens percorrem um país desolado pela luta entre dois lados que dividiram os Estados Unidos.
A estrutura tem um pouco do Apocalipse Now de Francis Ford Coppola. Uma guerra que soava ganha, mas com espólios esparramados pelo território onde se deu as batalhas. Mas que é difícil saber quem ganhou ou perdeu. No fim, o que era realidade parece dar espaço para um delírio onde a citação final do presidente é quase uma anedota óbvia que renega um fim anticlimático. Mas é a história sendo escrita através dos frames congelados pelos obturadores das câmeras.
Quem carrega essa história é a dupla de repórteres vividos por Kirsten Dunst e Wagner Moura que ainda ganha a companhia da novata vivida por Cailee Spaeny e pelo experiente jornalista vivido por Stephen McKinley Henderson. O objetivo de Lee e Joel (Dunst e Moura) é chegar até a capital do antigo governo americano com tempo suficiente para entrevistar o “Presidente” (Nick Offerman). Já Sammy e Jessie (Henderson e Spaeny) pegam essa carona para servirem como os dois lados dessa mesma moeda.
Garland expõe esses personagens a situações que vão colocando, não a sanidade desses personagens em jogo, mas sim deixando que essa realidade seja vista em todas suas nuances. Detalhes humanos, pessoas que parecem perambular por uma guerra que já acabou. Como se ela não tivesse fim, ou se teve e parece tudo normal novamente, deixa os atiradores nos telhados para garantir a “paz”, como em uma cidade por onde passam.
Guerra Civil é então enxergado através do olhar desses quatro personagens. Das dores e da força de Lee até a empolgação expansiva de Joel. Das sábias palavras de Sammy, até a imaturidade de Jessie. São essas visões que se juntam a cada pedacinho de filme para entender o que está acontecendo. Mas tudo administrado por um roteiro que não é expositivo, mas sim o completo contrário. Tem apenas a necessidade de fazer com que esses personagens discutam aquilo que está acontecendo, não aconteceu. Isso faz com que o filme não se permita nunca ser burocrático ou didático, mas sim lucido e engenhoso. O cenário completo precisa ser montado pelo espectador e isso faz parte da diversão.
Entender os lados e seus soldados não é simples, do mesmo jeito que até os personagens se pegam com essas dúvidas, o que sempre pode colocar suas vidas em risco. Uma jornada para documentar a história, mas uma jornada onde esses personagens estão constantemente em perigo, tanto física, quanto psicologicamente. Um lugar onde eles mesmo custam a entender a dinâmica de cada situação que cruzam. Uma estrutura que faz com que cada sequência se torne um momento de reflexão sobre como aquilo chegou ali. Ou simplesmente de quanto tempo a realidade do hoje demoraria para tornar esse mundo quebrado.
Um cenário plasticamente caprichado. Como se cada detalhe contasse uma história, mas, ao mesmo tempo, convivesse naquele lugar com algo discrepante do real. Como se a guerra tivesse rasgado aqueles cenários antes comuns ao olhar e tivesse feito uma colagem de situações que criam uma sensação de confronto. Essas questões conflitantes vão desde uma suposta ligação ou união da Califórnia com o Texas contra o “ex-governo”, até uma trilha sonora que não permite nunca que o clima da cena seja apenas reiterado, é preciso combater aquilo. Incomodar.
Diante do luto pela morte de um personagem, Garland coloca essa jornada dos personagens em meio a uma delicada sequência iluminada pelo fogo de uma floresta em chamas. A dor da morte iluminada pela beleza de algo que talvez não devesse ser tão belo. Os soldados vestidos com camisas havaianas talvez estejam do lado certo da história, mas sua violência é quase um orgasmo sujo e cruel para alguns deles. Uma apoteose em “slow-motion”.
Guerra civil é silencioso e desesperador, mas, ao mesmo tempo, é alto, forte, ensurdecedor e quase inflexível como um soco no estômago. Seu desenho de som acompanha essa vontade de estar nos detalhes, assim como silencia o grito de desespero e deixa ele ainda mais intenso e dolorido.
O grito em questão vem de Joel, personagem de Wagner Moura, que com Kirsten Dunst, não só são o coração do filme, como seguram ele de modos completamente diferentes. É lógico que o ponto centrar do filme está na personagem de Dunst, nos seus traumas e nessa espécie de passagem de bastão para a jovem que também quer ser uma fotojornalista, mas o lugar de Joel nessa relação é tão ou até mais importante para toda jornada, o que demonstra claramente a capacidade impecável de um roteiro que sabe fazer com que seus personagens tenham os tamanhos necessários para a história.
O ator brasileiro constrói então o lado emocional, o coração dessa dupla. Aquele que quer ir além, quaisquer que sejam as opções, mas está o tempo inteiro ligado a suas parceiras de viagem, tanto fisicamente (segurando nos seus coletes), quanto emocionalmente. O que Moura faz é criar um personagem que tem um charme meio jogado e blazé, mas que parece estar sempre a postos para qualquer dificuldade. Uma preocupação que convive com uma excitação pelo perigo e pela história que deixa um sorriso em seu rosto diante dos tiros e perigos. O ator não só da conta de tudo isso, como o faz de um jeito que, definitivamente, deveria ser lembrado, pelo menos, por alguns próximos meses de filmes lançados em 2024.
Entretanto, quem não deverá ser esquecida tão cedo é Dunst. Firme como uma pedra, mas rachada e se esfacelando a cada choque. É incrível ver a sutileza com que a atriz trata os pequenos detalhes e composições de sua personagem. Uma mudança que sucumbe em algo que beira o sacrifício, mas quem entende o quanto é importante esse último ensinamento para sua pupila. Não é dela que vem nenhuma lição de Guerra Civil, principalmente, pois o filme não está interessado nisso, mas sim é acompanhando-a que é possível entender o quanto essa jornada mudou todos e enviou cada um para um lugar desse novo mundo.
E Guerra Civil não tem uma lição de moral, porque não um filme sobre a guerra em si, mas sim sobre aqueles que sobreviveram e também sobre os que não conseguiram. Mas também é sobre esses poucos que tentam deixar um legado a ser lembrado, mesmo que por meio de um instante que entra pela lente da câmera ou uma frase que sobrevivera àquela história. Uma história sobre limites e sobre o quanto, quando eles são ultrapassados, tudo não rui como em um castelo de cartas, mas vai caindo como dominós enfileirados. Coppola nos contou isso com um barquinho navegando pelo Vietnã, agora é hora de Garland fazer o mesmo com quatro repórteres dentro de um carro e uma guerra que (depois dele), muita gente não vai mais duvidar que possa acontecer.
“Civil War” (EUA, 2024); escrito e dirigido por Alex Garland; com Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaeny, Stephen McKinley Henderson, Nick Offerman, Jefferson White, Nelson Lee e Jesse Plemons.