[dropcap]G[/dropcap]uerra Fria é o tipo de filme que acerta em tantos níveis que se torna injusto tentar resumir todas essas camadas de uma só vez. Porém, podemos dizer que obras sobre essa época tenebrosa que o título confessa geralmente usam apenas a atmosfera conspiracionista para se estabelecer e se esquecem de como as pessoas viviam na época. Felizmente o novo filme de Pawlikowski está concentrado na natureza humana de maneira tão intensa que o resultado é uma síntese brilhante do que significou uma era.
A história começa com músicas e cantos belíssimos dos camponeses da Polônia, anexada pela União Soviética. O plano do maestro Wiktor (Tomasz Kot) é capturar o que há de melhor entre os artistas simples do povo e mostrar ao Partido. Wiktor é um polonês orgulhoso de sua origem, como podemos notar quando ele observa com pesar uma igreja destruída e o fato que seus cantores não poderão cantar as canções folclóricas com suas belíssimas vozes em sua língua-mãe. Porém, bonitão, ele também possui desejos mundanos, e logo se engraça com Zula (Joanna Kulig), uma polonesa que também sabe jogar o mesmo jogo que ele para se manter vivo.
Esse começo com cantores atinge diretamente o nosso coração através das vozes e canções daquelas pessoas, que por causa disso consegue amolecer em meio aos planos burocratas dos russos de exaltar a nova República através dos povos dominados. E quando vemos o resultado esperado por eles, de alterar as letras para exaltar o ditador Stalin, é de partir o coração. Uma mistura de asco com medo de um dos genocidas mais aclamados da História. Pawlikowski está interessado, como o Grande Irmão em 1984, em destruir almas, e não apenas apagá-las. Para isso ele utiliza seus personagens Wiktor e Zula como incapazes de serem felizes a partir do momento que se conhecem e pelos anos que se seguem. Seja do lado direito ou esquerdo do muro de Berlim.
Aliás, note como não apenas o uso de preto e branco e da razão de aspecto quadrada da tela nos localiza historicamente, como é usado para exaltar a irrealidade retratada. A paleta de cores acinzentada costuma ter um efeito onírico por fugir um pouco mais da realidade, mas Pawlikowski vai um pouco além, usando reflexos como símbolos para criaturas sem alma. Dessa forma, ainda que Wiktor no piano seja perfeito em sua performance, a cena em que o vemos fazendo isso começa com o reflexo das teclas e de suas mãos no piano, indicando como ele se comporta como mero autômato para se manter vivo em um país de espírito massacrado.
Porém, o filme vai ainda mais além, quando vemos o mesmo Wiktor do outro lado do muro, em Paris, tocando a mesma música em um bar, e novamente o diretor começa a cena mostrando o reflexo das teclas no piano (embora invertida; direita/esquerda; um toque de gênio), e o músico novamente se encontra executando automaticamente a performance, diante dos outros músicos, parados, inúteis para o acompanhar, preocupados com tamanha falta de alma à “tarefa” de tocar um instrumento, eles que tocam empolgadíssimos jazz e outros ritmos mais animados.
Ou seja, este não é um filme que quer apenas criticar o regime comunista autoritário do norte, o que seria simples demais, mas também a falta de alma também no mundo capitalista, que cheio de cores, luzes, músicas excitantes e barulhentas, mulheres e álcool fáceis remete à mesma falta de significado nas ações das pessoas que nele vivem, demonstrando o paradoxo da liberdade plena como uma outra espécie de prisão. Isso fica claro quando Zula, apesar de gravar um disco e fazer sucesso, mal consegue conter seu desespero niilista ao som de Rock Around the Clock (um símbolo do nascimento do rock americano).
Guerra Fria não é um filme apenas sobre pessoas, mas como essas pessoas são afetadas pelo espírito do tempo. É um filme difícil, pois não há solução para seus personagens. A redenção ocorre apenas via religiosa, a única fonte presente na memória das pessoas (quando os regimes comunistas caem, geralmente a primeira coisa que as pessoas fazem é reconstruir as igrejas e seus rituais, antes proibidos). Também não é um filme sobre cortina de ferro, conspiração e tratamento desumano. É uma tortura psicológica, lenta e sistemática, que esmaga a alma dos mais desavisados que entraram na sala de cinema.
Esse texto faz parte da cobertura da 42° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
“Zimna Wojna (aka Cold War)” (Pol/Fra/UK, 2018), escrito por Pawel Pawlikowski, Janusz Glowacki e Piotr Borkowski, dirigido por Pawel Pawlikowski, com Joanna Kulig, Tomasz Kot, Borys Szyc.