Mel Gibson não apenas é a escolha perfeita para seu papel paternal em Herança de Sangue: a sua persona dentro e fora das telas parece ser o mecanismo-chave que faz tudo funcionar no longa de Jean-François Richet.
Em certo momento, sua rebelde filha se assusta quando vê seu pai, um sujeito com traços agressivos sem a barba do início do filme, que escondia seu rosto da época dos escândalos de violência doméstica. Há ainda uma cena na estrada com motos e um “acidente” que lembra muito a série Mad Max. Há até um antigo amigo do personagem de Gibson que negocia artefatos nazistas (Gibson, é interessante lembrar, ficou conhecido após A Paixão de Cristo como um cineasta com sentimentos anti-semitas). Simplesmente não há como não enxergar que o roteiro escrito por Peter Craig baseado em seu romance homônimo não tivesse Gibson como parte de sua inspiração (ou que pelo menos a adaptação apostasse nisso). O
Herança de Sangue parece então pegar todas essas oportunidades do roteiro para de certa forma redimir Gibson por ser (ou ter sido) um babaca na vida real. Ele até é um ex-condenado em condicional, querendo dizer que ele não pode pegar em armas e ferir pessoas na sequência mais divertida do filme, onde ele vai enumerando seus delitos.
E o pior é que funciona. Com um carisma inabalável, seu personagem é um pai arrependido pelas decisões que o deixaram longe da filha desaparecida por muitos anos, e é tocante perceber a tatuagem de sua filha em seu braço fazendo par com uma figura mais obscura com a frase “alma perdida”. Além do mais, a naturalidade com que ele enxuga as lágrimas do rosto de sua garota, e como parece disposto a vender a ideia para ela de que se deve sobreviver a qualquer custo (pois “nunca se sabe quando vai ser o melhor dia de sua vida”) são parte integrante de um protagonista complexo, que passou por poucas e boas graças ao seu vício por bebidas e enxerga em sua herdeira os mesmos traços que demarcaram seus erros na vida. Ele não é um pai que está furioso por como sua filha é irresponsável porque entende que há muito dela que veio dele. E isso é vital para entender o porquê aquele homem abandonado em um trailer no deserto de repente se torna dono de uma motivação que o faria ir no inferno e voltar com o capeta pelo colarinho.
Sua filha, por outro lado, interpretada por Erin Moriarty quase convencendo de sua jovem idade, (mas nunca conseguindo) é uma jovem inconsequente como uma qualquer um de sua “idade”. Vítima de uma lavagem cerebral desde cedo, ela caminha em uma nuvem de incertezas enquanto tenta se manter viva e escapar de um destino quase certo. Ela faz um belo par com Gibson e não chega a estragar, mas não apresenta nada de fenomenal. Conforme ela aprende onde se meteu ela vai virando um reflexo de seu pai e sua presença de tela existe apenas por conta de seu drama. Ainda bem que seu velho já aprendeu que isso só atrapalha o lado prático de viver, e seu pragmatismo aliado à urgência da situação é o que consegue fazer o filme fluir sem soar muito moroso para um filme de ação.
Aliás, é preciso lembrar aos fãs de ação: este é acima de tudo um drama sobre a relação pai e filha, mas contém algumas das melhores cenas de ação que você verá esse ano, seja pelo seu realismo ou por conseguir nos fazer se importar de fato com seus personagens (o que também colabora para o realismo). A jogada de câmera de François Richet, tremida, com zoom, e a montagem com cortes precisos e na maioria das vezes inspirada, consegue aliar o tenso com o cômico de uma maneira tão natural que quase passa despercebido (e gosto particularmente do diálogo que o personagem de Gibson mantém ao telefone com seu conselheiro e amigo vivido por William H. Macy, quando depois descobrimos o que os cortes já acusam: eles estão algumas dezenas de metros de distância).
Alguns detalhes são preguiçosos, como a TV que convenientemente começa a mostrar a moça sendo procurada no momento em que ela entra na recepção do hotel onde está escondida, ou a maneira burocrática com que a passagem com o amigo nazista de Gibson é empurrada. Mas a vitalidade dos dois compensa em muito os momentos morosos que no fundo não significam quase nada senão uma rebarba inconsequente no resultado final.
Uma pena, portanto, que tanta dedicação com a dupla principal seja muitas vezes sabotada pelos antagonistas, genéricos e pouco inspirados. Não há personalidade nenhuma por trás do personagem de Diego Luna, e por mais charmoso que ele queira parecer, este é um filme que apela para vilões mais ríspidos como em Breaking Bad, e muitas vezes mais inteligentes. Para compensar, a pequena ponta de Miguel Sandoval como um outro antigo amigo do personagem de Gibson é impagável pela economia.
Focando na relação pai e filha, Herança de Sangue é um drama com cenas de ação surpreendentemente boas. E de brinde você ainda leva referências mais ou menos sutis de que Mel Gibson continua tentando expurgar uma dívida no cartório da sociedade. A boa notícia é que, embora essa dívida não tenha qualquer relação com suas obras no cinema, está dando certo.
“Blood Father” (Fra, 2016), escrito por Peter Craig e Andrea Berloff, dirigido por Jean-François Richet, com Mel Gibson, Erin Moriarty, Diego Luna, Michael Parks, William H. Macy