Human Flow é um documentário em seu formato clássico. Provavelmente as 300 horas de filmagens do projeto servirão de acervo sobre a grande imigração de nosso tempo. E provavelmente as pouco mais de duas horas de filme serão lembrados dessa forma, também.
Isso porque o diretor Ai Weiwei, homenageado desta 41° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, não parece estar dirigindo através de um filtro autoral. O que é curioso, já que Weiwei é ele próprio, podemos dizer, um imigrante. Foragido de seu país natal, ele é um refugiado na Alemanha, que ironicamente é o destino final de milhões de refugiados que chegam na Europa todos os anos pelo Mar Mediterrâneo. Mas infelizmente as fronteiras estão fechadas para esses povos.
Human Flow trata bastante sobre refugiados, mas seu núcleo tenta ser mais amplo. É sobre migração humana. A larga escala em que ela acontece hoje em dia, seja por guerras, fome, miséria, ou até melhores oportunidades, foi o elemento-chave que fez com que Weiwei se aventurasse em contar essa história em escala global, em mais de 20 tribos temporárias espalhadas em áreas neutras do globo.
O filme vai capturar seu senso estético desde o começo. Usando uma fotografia límpida de regiões com paisagens diversas e estonteantes, o filtro da realidade aqui é quase nenhum. Pelo menos no que diz respeito às cores. Elas são vivas vindas de um trabalho que lembra programas da National Geographics e possui tomadas que lembram os noticiários do dia-a-dia. Isso até atrapalha um pouco a dramatização, já que a beleza dos lugares por onde passamos não contrasta com a realidade humana por aqueles lados, mas parece a complementar. Isso porque muitos fogem de um mal invisível. As pessoas possuem abrigos, dizem, de má qualidade. Mas apenas dizem. Nunca vemos nada de fato alarmante.
O que nos leva para a investigação de quais seriam as reais intenções de seu criador. Filmado muitas vezes com o diretor dentro do quadro, segurando sua câmera, ele vira uma persona, ou se personifica, contando uma história que arrisca ter um herói (o diretor refugiado dirigindo bravamente um filme), o que soa como o exato oposto de uma brincadeira no filme, quando ele propõe a um refugiado anônimo de trocarem passaportes. “Respeito”, ele diz, como se respeitasse a situação dessas pessoas. Mas as histórias não batem aqui. Weiwei parece se enxergar como figura pertinente na paisagem dos refugiados mais do que os próprio refugiados.
Outro fator estético marcante deste filme é sua trilha sonora. Naturalmente minimalista, nunca tenta exaltar os acontecimentos na tela, mas acompanhá-los de maneira reflexiva, solene e perene. Juntos, som e imagem realizam um passeio por cima e em torno de pessoas. Vê-las de cima frequentemente as transformam em curiosidades do planeta, meros adornos cuja função é exaltar a poesia da situação, ainda que trágica (e o filme sugestivamente usa diversos trechos de poetas de origem no Oriente Médio).
Excessivamente longo para um filme que possui um fiapo de narrativa, Human Flow é um filme necessário. Se foi a melhor maneira de fazê-lo, não se sabe. Há um desafio implícito quando se diz “vou fazer um documentário que envolve lugares isolados em várias partes do mundo”. Esse desafio foi transposto com elegância e leveza. Tanta leveza que talvez o peso da migração precária dessas pessoas parece ter ficado no caminho. Mas quem sabe esteja no resto do material que não foi para o filme.
*Human Flow faz parte da cobertura da 41° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
“Human Flow” (Germany, 2017), escrito por Chin-Chin Yap, Tim Finch, Boris Cheshirkov, dirigido por Ai Weiwei, com Israa Abboud, Hiba Abed, Rami Abu Sondos, Asmaa Al-Bahiyya, Eman Al-Masina