Na mitologia grega, Ícaro foi um personagem que ganhou asas de cera e voou tão alto e tão perto do sol, que viu elas derreterem. A queda foi enorme e ele morreu. Ícaro, documentário produzido pela Netflix e indicado ao Oscar, não usa claramente o mito grego para traçar um paralelo contemporâneo, mas acredite, ele está lá.
Mas talvez o mais curioso de Ícaro seja o quanto ele está abraçado com a realidade e até influência ela de um jeito que ninguém no começo do filme imagina que isso pudesse acontecer.
Tudo começa com o cineasta Bryan Fogel embarcando em uma ideia ¿à lá Super Size Me¿ motivado pela descoberta do dopping do ciclista Lance Armstrong e da aparente aceitação desse tipo de ¿combustível¿. A ideia era simples, ciclista amador, Fogel iria então passar por um processo inteiro de dopping durante um ano, ao mesmo tempo em que arrumava um jeito de mascarar o usa das drogas. E isso poderia acabar por ai se seu caminho não tivesse cruzado com o do russo Grigory Rodchenkov.
Rodchenkov era o responsável por um dos maiores laboratórios de análise de dopping do mundo, na Russia. Mesmo laboratório que estava no olho do furacão do mega escândalo que estourou no mundo dos esportes um ano antes da Olímpiada do Rio de Janeiro, e que ainda se reflete hoje, com o país não sendo representado nas Olímpiadas de Inverno (somente alguns atletas conseguiram o direito de competir, mas sem a bandeira russa).
E quando tudo isso estourou, a câmera de Fogel está lá, olhando para Rodchenkov pelo Skype enquanto ele explica todo caminho de fraude que as amostras tomavam, como se não fosse nada demais.
¿ìcaro¿ então permite que o espectador acompanhe de perto todas as reviravoltas desse processo. Aos poucos, as cartas vão caindo, tudo vai ficando mais perigoso e Rodchenkov acaba se tornando um dos pontos principais de toda investigação, rodeado de mentiras do governo russo e de uma impressão de que tudo ainda vai mais fundo.
E talvez o detalhe mais interessante do documentário seja o quanto ele se percebe um organismo vivo e crescente. Se a ideia inicial era essa experiência, aos poucos vai mergulhando nessa polêmica e tentando entender o que realmente está acontecendo, tudo isso para, em um terceiro momento, ao melhor estilo Citzen Four, partir para a defesa de seu personagem. Ícaro aceite ser pessoal, mesmo que isso o obrigue a deixar de lado tudo aquilo que estava planejando fazer.
Isso reflete em uma situação ainda mais curiosa, já que muitos documentários que acompanham de perto algum tipo de situação tentam influenciar aquilo, mas quase nenhum consegue. ¿Ícaro¿ o faz. Não seu lançamento, mas sim é através de sua produção que Rodchenkov abre as portas para todo esquema de fraude russa envolvendo o dopping de seus atletas, uma série de informações e verdades desvendadas que ajudam os órgãos que regulam dopping e até o próprio COI a tomar medidas que influenciaram a história das olimpíadas.
Quando a gente aponta algum filme ou documentário como ¿documento histórico¿, talvez não tenhamos em mente exemplos como o de Ícaro que é a história propriamente dita. A história de um grupo de atletas que não importaram em usas suas asas de cera para chegarem mais longe, assim também como a história do pai de Ícaro, que criou suas asas, e assim como o governo russo, ficou sem ¿seus filhos¿.
¿Icarus¿ (EUA, 2017), escrito por Bryan Fogel e Jon Bertain, dirigido por Bryan Fogel, com Bryan Fogel, Nikita Kamaev e Grigory Rodchenkov