Chela (Ana Brun) e Chiquita (Margarita Irún) em Las Herederas são um casal que está junto há muito tempo. A relação é baseada na rotina e na dependência que Chela tem por Chiquita, que trata a parceira quase como uma criança. Mas as dívidas de Chiquita colocaram Chela em uma situação inesperada. Elas estão vendendo diversas coisas da casa em que Chela morou a vida toda ¿ prataria, cristais, até móveis -, e Chiquita é presa, pois o banco encara suas dívidas como fraude. Uma combinação de fatores que força Chela para fora de sua zona de conforto e a faz encarar a realidade: seu status já não é mais o mesmo.
É um pedido da vizinha de Chela que desencadeia sua jornada. Pituca, certo dia, pede para que Chela a leve de carro até o seu jogo de cartas semanal. O que era para ser uma vez, vira hábito e Chela se torna a chauffer oficial de Pituca e suas amigas, apesar de, inicialmente, ser uma motorista tímida ¿ era Chiqui que a levava para todos os lugares ¿ e sequer ter uma carteira de motorista. É nessas jornadas, também, que Chela conhece Angy (Ana Ivanova), uma sensual mulher mais nova que desperta em Chela desejos até então desconhecidos a ela.
Las Herederas é o primeiro longa-metragem do paraguaio Marcelo Martinessi (e que debut!). O filme traz uma constelação pouco comum à tela, com protagonistas idosas, lésbicas e um elenco quase que exclusivamente feminino, tudo isso em uma história que mistura decadência com auto-descoberta, tendo como pano de fundo o sistema de classes sociais do Paraguai (se bem que poderia muito bem ser o do Brasil). É praticamente um filme “coming of age”, mas em uma linha de tempo diferente, visto que Chela, claramente, viveu em sua bolha de classe média/alta a vida toda e agora tem que se virar sozinha e descobrir seus reais desejos. É a primeira vez que ela tem de descobrir quem realmente é e se tornar independente. Amadurecer.
A crítica social que o filme tem permeando toda a história traz uma profundidade extra. De certa forma, lembra Que horas ela volta?, mas sob uma perspectiva diferente. Em vez de vermos as relações de poder entre as diferentes classes sociais, vemos uma mulher acostumada com uma vida mais luxuosa em decadência e como isso afeta a sua maneira de viver. Las Herederas coloca em cena a dificuldade de Chela em aceitar seu novo status inicialmente, especialmente nas cenas em que suas coisas estão sendo vendidas e, posteriormente, nas cenas em que visita Chiqui na prisão. O misto de angústia, desgosto e asco é visível no olhar e nas ações de Chela. O processo de adaptação a essa nova realidade é feito com relutância, mas, eventualmente, Chela toma gosto por essa nova vida.
Tudo feito com uma câmera na mão, o que deixa a produção toda com um “feeling” orgânico e realista. A progressão de Chela de passiva a mulher independente também é refletida no modo como o filme é feito. A projeção começa com planos subjetivos, escondidos atrás de portas, espiando por frestas, de Chela vendo enquanto uma mulher questiona Chiquita sobre os preços das coisas que elas estão vendendo. A protagonista mal aparece. Está escondida. Conforme a história se desenvolve, Chela aparece mais e mais, em planos mais fechados e mais frontais. Sua aparência também muda, seus figurinos têm mais cor, sua dominância em cena se torna mais evidente.
Além da direção inteligente e da história linda, o elenco é uma das grandes qualidades do filme. Ana Brun é espetacular em sua sutileza e cada pequeno movimento é recheado de intenção e significado. É impressionante que esse seja seu primeiro filme. Já a performance de Margarita Irún traz um contraste perfeito à de Brun, com uma dominância que deixa a relação entre Chiqui e Chela ainda mais evidente. Ana Ivanova dá vida a uma Angy que, apesar de sensual, foge dos clichês da femme fatale, fazendo da personagem verdadeira e natural.
Em resumo, Las Herederas é um filme que vale a pena ser visto e que, quiçá, será capaz de colocar o Paraguai no mapa cinema mundial.
¿Las Herederas¿ (Par/Ale/Uru/Bra/Nor/Fra, 2018), escrito e dirigido por Marcelo Martinessi, com Ana Brun, Margarita Irún e Ana Ivanova.