*o filme faz parte da cobertura da 43° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
[dropcap]O[/dropcap] que fazer quando você chega no fundo do poço e continua caindo? Depois de ser rejeitada por um produtor de filmes pornô hardcore na cidade de Nova York, onde mora com um visto expirado, a jovem russa Lillian, protagonista do filme que leva seu nome, toma a única decisão que lhe parece possível: caminhar de volta até seu país natal.
Inspirado na história real de Lillian Alling, que se propôs à mesma jornada na década de 1920, o longa austríaco escrito e dirigido por Andreas Horvath (que, assinando também a direção de fotografia e a trilha sonora, faz um trabalho primoroso em todas as funções que assume) sai do ambiente sufocante e dos planos bem fechados da sala do produtor para imediatamente entregar-se a grandes planos abertos que traduzem o quão minúscula Lillian (Patrycja Planik) é diante do mundo imenso que a cerca. Assim, a amplitude e a gigantesca extensão das paisagens norte-americanas mostram-se também sufocantes — e sempre deslumbrantemente belas.
Afinal, Lillian — o filme — entende de forma tocante e sensível que, para a personagem que lhe dá nome, a longa, longa jornada por dentro dos Estados Unidos e chegando até o Alaska para enfim cruzar até a Rússia representa uma experiência completamente diferente das que ela já havia tido até então, sendo um desafio não apenas pelos motivos óbvios de tal empreitada, mas também, por exemplo, por ela não falar ou entender uma palavra de inglês. Mas, somados a tudo isso, vêm também os acontecimentos mágicos no meio do caminho, dos mais sensacionais ao mais banais: um saco de gelo após uma caminhada no deserto. A gentileza de um estranho que entrega sua jaqueta a ela. A Aurora Boreal. Lillian no feriado de 4 de julho, ora cercada pela escuridão profunda da noite, ora iluminada pela explosão de cores dos fogos de artifício.
Mas Horvath toma cuidado para não encher sua obra de romantização ou dramatização em excesso, assumindo um tom quase contemplativo a que se soma o eterno silêncio de Lillian, que não fala mais nada depois de trocar poucas palavras com o produtor da primeira cena do filme. Assim, outro ponto interessante é que a jovem consegue sair ilesa de qualquer indício de perigo a que qualquer mulher estaria sujeita na situação dela, o que permite que o grande embate do longa seja entre Lillian e sua principal inimiga — e companheira: a própria Natureza.
Dessa forma, ela consegue mostrar sua resiliência e sagacidade ao enfrentar situações cotidianas e ordinárias, que se tornam extraordinárias por conta do contexto de que são resultantes e sob a câmera de Horvath: a chegada da menstruação quando não há absorventes, a necessidade de conseguir novas peças de roupa de acordo com as drásticas mudanças do clima conforme as estações e a paisagem se alteram, a aparição inesperada da chuva, a eterna busca por comida e abrigo. Porém — é claro —, quando se trata da Natureza, resiliência e sagacidade nem sempre são o bastante. Horvath e sua protagonista sabem bem disso, e tal conhecimento percorre o filme como um todo.
Embalado pela melancólica e tensa trilha sonora de Horvath que aparece pontualmente para complementar imagens tão trágicas quanto belas, Lillian acerta também na maneira com que constrói a solidão de sua protagonista. O silêncio permanente da jovem contrasta com o falatório animado dos dois apresentadores de rádio que aparecem aqui e ali para falar sobre a previsão do tempo e que atuam quase como narradores em off da obra, enquanto os norte-americanos parecem surgir no caminho de Lillian apenas em grandes grupos — de turistas, de espectadores, de participantes de algum evento —; fora isso, com exceção de uma ou outra pessoa sozinha pelo caminho, as pequenas cidades pelas quais Lillian passa são desprovidas de atividade, de vida cotidiana.
Livrando-se rapidamente de quaisquer indícios de que se entregaria a soluções pedestres — a fala do produtor que, referindo-se à falta de documentos de Lillian, exclama que ela “não tem nada” e o outdoor no caminho da jovem que questiona: “Onde está a sua família?” (o subtexto de ambas as situações, que aparecem nos primeiros minutos do filme, é óbvio) — Lillian revela-se uma obra estética e tematicamente fascinante na forma com que pega a jornada absurda de sua protagonista e a desenvolve com sensibilidade, jamais duvidando da determinação de Lillian, qualquer que seja o resultado dela.
“Lillian” (Aus, 2019), escrito e dirigido por Andreas Horvath, estrelado por Patrycja Planik.