Assim como seu personagem principal, Mank, novo filme de David Fincher, celebra Hollywood em toda suas belezas e maluquices. Não a Hollywood que surge nas telas dos cinemas, mas sim aquela que está por trás dos bastidores, dos detalhes sórdidos às fofocas, mas sobre tudo isso, a Hollywood da beleza de se ver uma obra de arte sendo construída.
Para quem não ligou o nome à pessoa, Mank é sobre o roteirista Herman Mankiewicz, roteirista de Cidadão Kane e, por muito anos, uma das personalidades mais conhecidas desses corredores onde poder e a magia do cinema se confundem. Alcoólatra inveterado, “Mank” escreveu sua maior obra entrevado em uma cama, mas Mank, o filme, é sobre um pouco mais que isso.
É também um pouco mais sobre a própria carreira de David Fincher. O diretor aponta que a primeira vez que viu o roteiro de Mank foi em 1993 quando seu pai, Jack Fincher, lhe mostrou esse texto onde ele partia do famoso texto da crítica Pauline Kael, Criando Kane, e mostrava Mankievicz como único responsável pelo texto do clássico. Jack faleceu em 2003 e só agora Fincher embarcou nessa jornada pela criação de Cidadão Kane pela ótica do escritor. O resultado é estonteante.
Tampouco, só poderia acontecer agora, com David Fincher estabelecido e maduro o suficiente para já ser considerado um dos maiores cineastas de sua geração. Mank é um daqueles filmes onde faltariam elogios e sobrariam trabalhos impecáveis dos envolvidos. Mais ou menos como se os astros se alinhassem mais uma vez para contar um pedacinho da história de outro momento onde eles ficaram um atrás do outro para apontar para Orson Welles e sua obra máxima.
Mas o filme, decididamente, não é sobre Orson e ele talvez fosse odiar isso. Enquanto acompanha “Mank” (Gary Oldman) nessa cama com a perna quebrada e tendo que ditar o roteiro de Cidadão Kane para uma secretária contratada pelo Estúdio RKO, Rita Alexander (Lily Collins), Mank (o filme) volta para entender o que levou esse personagem a esse momento específico.
Fincher monta seu filme como em um roteiro e deixa as linhas do próprio texto pularem na imagem para ditar a data. Talvez um pedacinho de seu pai no sentido mais puro, mas também uma decisão poderosa e que faz o filme se organizar de modo dinâmico e preciso.
Mank vai entender de onde saiu a fama de Herman Mankiewicz através de pequenos momentos da história desse personagem riquíssimo. Isso, enquanto desvende seu relacionamento com o magnata William Randolph Hearst, óbvia inspiração de Charles Foster Kane (protagonista de Cidadão Kane) e perambula pela Hollywood dos anos 30 com suas excentricidades e ainda um conflito político que marca uma época e abre as portas para um período político extremamente obscuro do cinema americano. O roteiro de Jack Fincher passa por tudo isso, mas com uma unidade dramática irretocável. Tudo está ali para um objetivo claro e poderoso: entender Herman Mankiewicz.
Os textos e diálogos são inteligentes e objetivos, não existe nada sobrando na história de Mank e os pequenos momentos, assim como na estrutura de Cidadão Kane, têm seus pontos altos autossustentados. Quase como se fossem pequenos curtas que formam a visão de Hollywood através da ótica desse roteirista que andava em uma corda bamba entre a genialidade e a mais profunda destruição. Exatamente como Hollywood.
E assim como Hollywood nos anos 30, David Fincher faz de seu Mank uma grande brincadeira estética. Principalmente com a direção de fotografia de Erick Messerschimidt (que trabalhou com ele na série Mindhunters) e com a direção de arte de seu velho parceiro Donald Graham Burt. Fincher recria o clima da época e cria um filme que parece estar sendo feito naqueles anos deslumbrantes do início do cinema falado (até a marcas da troca de rolo surgem como um “fanservice” divertido). Seu “preto e branco” é quase prateado, as luzes brilham como se agarradas às sombras, as enormes profundidades de campo deixam o infinito claro e sem fim. Nos poucos momentos onde Welles surge na tela (Tom Burke), Messerschimidt copia Greg Tolland (diretor de fotografia de Cidadão Kane) com a câmera próxima do ator e até um contra plongee tão baixo que expões o teto como se fosse uma força oprimindo o cineasta naquele momento de raiva.
O visual deslumbrante e o roteiro inteligente e afiado ainda encontram um elenco ainda mais acertado. Gary Oldman não cria uma caricatura e nem tenta recriar o personagem real, apenas entende suas motivações e toma de assalto absolutamente qualquer cena em que aparece. Seu “Mank” é poderoso e rebelde, não está preso às amarras de Hollywood, mesmo que seus vícios em álcool e jogo encarcerem sua fama e sua importância. Oldman constrói essa consciência do personagem através de um olhar e de uma bondade simpáticos. “Mank” não está lá nunca para prejudicar ninguém a não ser ele mesmo e Oldman é o homem perfeito para esse trabalho.
O resto do filme fica com Amanda Seyfried e Lilly Collins. Seyfried como Marion Davis, esposa de Hearst, junta o glamour de uma estrela com uma sinceridade que combina perfeitamente bem com a expansão de Oldman no personagem. A dinâmica do dois é incrível e ela tem talvez o mais interessante trabalho de sua carreira. Já Collins parte por outro aspecto e cria uma personagem tão poderosa quanto “Mank”, já que precisa bater de frente com ele em grande parte do tempo, o resultado é uma força igualmente descomunal ao mesmo tempo que esconde uma fragilidade sensível e um olhar de admiração que completa a criação desse mito ali na tela, em preto e branco, cheio de whisky, páginas e mais páginas e uma vontade de contar histórias que ultrapassam sua capacidade de preservação.
Questionado a respeito do Oscar de Melhor Roteiro de 1942, única vitória do filme naquela noite, Orson Welles (que não escreveu nem uma linha de Cidadão Kane!) aponta: “Isso, meu caro, é Hollywood”. Perguntado sobre a mesma coisa, Herman Mankiewicz declara: “isso, meu caro, é a magia do cinema”. A diferença que talvez Fincher tenha demorado tanto tempo para entender era que seu pai não estava interessado em Hollywood e seus meandros, mas sim na construção dessa magia. Trinta anos depois, David Fincher leva para as telas o texto do pai em uma primoroso e elegante homenagem ao cinema. O resultado é um daqueles momentos onde você sente estar vendo na tela um filme que nasce clássico.
“Mank” (EUA, 2020); escrito por Jack Fincher; dirigido por David FIncher; com Gary Oldman, Amdanda Seyfried, Lily Collins, Tom Pelphrey, Aliss Howard, Tuppence Middleton, Monika Gossman, Tom Burke e Charles Dance