Há uma certa frieza em Mar de Dentro, presente até mesmo nos personagens e nos relacionamentos entre eles — porém, se essa frieza prejudica o resultado final da obra, também contribui para a não-romantização de seu principal tema: a maternidade.
Manuela (Monica Iozzi), focada na carreira promissora e de sucesso em uma agência de publicidade em São Paulo, inicia um relacionamento casual com um colega de trabalho (Rafael Losso). Mas, quando ela descobre ainda no começo do namoro que está grávida, a promessa dele de permanecer por perto a ajuda a decidir ter o bebê. Uma reviravolta, entretanto, faz com que Manu se veja tendo que seguir a gravidez e cuidar do filho sozinha.
Se a evolução do relacionamento dos dois já surge mal construída — o casal torna-se bastante próximo, mas isso parece acontecer apenas por exigência do roteiro e não por que os sentimentos entre eles realmente cresceram —, a tal reviravolta é outro problema. O fato de a situação não receber nenhum tipo de explicação faz com que a decisão da diretora Dainara Toffoli (que assina o roteiro ao lado de Elaine Teixeira) pareça covarde, e não fruto de pura causalidade como ela tenta estabelecer. A impressão é que Mar de Dentro não quis “vilanizar” a figura do pai fazendo-o tomar o caminho mais comum: simplesmente negar a paternidade.
O que de fato acontece no longa pelo menos abre caminho para o envolvimento dos avós paternos na vida de Manuela, tentando impor não apenas dicas pedantes como “o bebê precisa ficar mais agasalhado”, mas também seu modo de vida cristão. Essa trama, porém, não chega a realmente ser desenvolvida e não justifica sua inclusão na obra. Da mesma forma, a conexão do namorado com o mar e o trauma que Manu nele sofreu parece existir apenas para justificar o título do longa-metragem.
Um ponto de acerto, porém, é a forma com que Toffoli e Teixeira retratam o privilégio de Manu: ainda que a maternidade-solo seja difícil para ela, não dá para ignorar que ela está em uma situação infinitamente melhor e mais confortável do que a maioria das mulheres; o longa ilustra isso ao trazer a protagonista, por exemplo, contratando uma babá para cada turno do dia. Uma conversa entre Manu e uma das babás, que também é mãe, escancara a desigualdade que obriga a jovem mulher a arrumar alguém para cuidar de sua própria filha enquanto ela passa a noite fora de casa, cuidando da criança de outra mulher.
Bem explorada, também, é a imensa solidão de Manu: ela tem quem a ajude voluntariamente, sim — a irmã e a avó do garotinho, por exemplo —, mas aceitar essa ajuda significa abrir mão de sua própria independência e autoridade enquanto mãe. Para poder criar o filho do jeito que deseja, Manuela precisa abrir mão dessa ajuda.
O tema da solidão, aliás, abre caminho para a bela cena final de Mar de Dentro, que é também o único momento em que a paixão do pai da criança pelo mar mostra-se significativo. Assim, ainda que repleto de fios abandonados no meio do caminho, o longa estabelece-se como um retrato interessante da protagonista não apenas como mãe, mas como mulher — como indivíduo.
“Mar de Dentro” (Bra, 2020), escrito por Dainara Toffoli e Elaine Teixeira, dirigido por Dainara Toffoli, com Monica Iozzi, Rafael Losso, Gilda Nomacce e Fabiana Gugli.
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