[dropcap]A[/dropcap]o longo da história do Cristianismo, construiu-se a ideia de que Maria Madalena era uma prostituta, uma mulher “fácil” – afinal, que outro papel uma mulher poderia desempenhar viajando em meio a uma dúzia de homens, não é mesmo. Entretanto, como conta esta sua nova “cinebiografia”, Maria era uma mulher não apenas envolvida com a causa de Jesus, mas também à frente de seu tempo em relação às expectativas que a sociedade tinha do gênero feminino. O resultado é uma obra tristemente relevante, ainda que isso seja mais forte no primeiro ato.
A jovem Maria (Rooney Mara) vive na pequena cidade de Magdala, na Galileia, com sua família. Conhecemos a protagonista quando ela é chamada para auxiliar no parto de uma parente, o que faz com que o filme inicie com uma cena centrada na força daquelas mulheres e no apoio que elas fornecem umas às outras. A chegada dos homens para ver o bebê, é claro, acaba com essa harmonia ¿ quando Maria fala sobre o esforço da nova mãe durante o parto, declarando que ela possui um talento nato para aquilo, seu irmão questiona: “Todas vocês não o possuem?”. A jovem não havia feito mais do que a sua obrigação, ou melhor, havia apenas cumprido sua sina de ter nascido mulher e, portanto, servir principalmente para parir. Logo, o pai de Maria anuncia que encontrou um novo pretendente para ela e que, dessa vez, ela precisa se casar. “Não sou feita para essa vida”, implora a protagonista. Seu irmão diz que há algo de anormal nela, só pode haver ¿ afinal, como Maria ousa “querer viver como um homem” e tomar as rédeas da própria vida? É nesse contexto que ela conhece Jesus (Joaquin Phoenix) e identifica-se com sua mensagem, decidindo então partir com ele e seus apóstolos para espalhá-la pela Galileia.
O diretor Garth Davis mantém Maria no centro da narrativa, mérito também, é claro, das roteiristas Helen Edmundson e Philippa Goslett. Se no primeiro ato vemos o quanto Maria encontra-se deslocada da realidade ao seu redor (que afeta e incomoda todas as mulheres, é claro, mas contra a qual apenas ela se manifesta abertamente), o restante da narrativa coloca seus atos em pé de igualdade com os milagres realizados por Jesus, algo presente principalmente na sequência em que ela e Pedro (Chiwetel Ejiofor) cuidam, sob o comando dela, de uma família à beira da morte. Além disso, é importante perceber também o quanto a presença de Maria em meio aos discípulos de Jesus dá espaço para que as mulheres que eles encontram pelo caminho conversem mais abertamente com eles, revelando seus anseios e mostrando-se mais receptivas ao que eles têm a dizer ¿ nesse sentido, um dos momentos mais tocantes do longa é quando uma dessas mulheres diz: “Somos Mulheres. Nossas vidas não pertencem a nós mesmas.”, como se Maria e Jesus fossem as primeiras pessoas interessadas em saber o que elas querem, o que temem e do que precisam, não em relação às tarefas que desempenham incansavelmente, aos filhos ou a algum homem, mas espírita e mentalmente.
Entretanto, apesar de a montagem de Alexandre de Franceschi e Melanie Oliver conseguir trazer fluidez aos acontecimentos que movem a trama, Davis não consegue “contornar” o fato de que, a partir do momento em que Jesus surge em cena, é ele quem será o responsável pela maioria das decisões e ações de Maria Madalena. Dessa forma, mesmo que, como já dito, a protagonista mantenha-se no centro de tudo, isso passa a ser feito principalmente por meio da maneira com que Maria observa e compreende o que acontece ao seu redor.
Há, pelo menos, conversas importantes entre ela e os discípulos, principalmente Pedro e Judas (Tahar Rahim), que contrabalanceiam o fato de que não é mais ela quem faz a narrativa andar. Nesse sentido, aliás, incomoda também o tom episódico que o filme adota a partir do momento em que o grupo parte de Magdala, além da necessidade de balancear a abordagem mais contemplativa do início da projeção com a ação constante que se segue, e que aumenta cada vez mais.
Afinal, aqui, estamos diante de uma versão mais frustrada e mais rebelde de Jesus, características que Joaquin Phoenix mescla com excelência àquelas que mais comumente associamos à figura. O ator faz dele, então, um personagem multifacetado e interessante, que parece carregar o peso do mundo nas costas ao mesmo tempo em que entende que parar de exercer sua missão não é sequer uma alternativa. Ele chega até mesmo a “colocar a mão na massa” contra o sistema político explorador daquela sociedade.
Garth Davis acerta também ao assumir uma abordagem mais realista da história – aqui, Jesus opera milagres, mas não está interessado em fazer você acreditar nisso ou não; eles simplesmente acontecem. Dessa forma, o longa não exige que o espectador seja cristão para funcionar. E, se Chiwetel Ejiofor faz o que pode com um personagem que pouca chance tem de demonstrar sua tridimensionalidade, Tahar Rahim beneficia-se do retrato que o filme faz de Judas como uma figura trágica, cujos erros nascem do desespero.
Mas nada disso funcionaria sem a sutileza com que Rooney Mara constrói a personagem-título – a atriz demonstra uma força contida que externaliza-se de maneira cada vez mais forte e, utilizando principalmente o olhar, consegue transmitir o turbilhão de emoções e conflitos internos que se passam na mente de Maria.
Assim, Maria Madalena surge como uma obra alinhada com o mundo atual, principalmente na forma com que trata a ânsia da protagonista de ter a liberdade de traçar seu próprio caminho.
“Mary Magdalene” (RU/Aus, 2018), escrito por Helen Edmundson e Philippa Goslett, dirigido por Garth Davis, com Rooney Mara, Joaquin Phoenix, Chiwetel Ejiofor, Tahar Rahim, Ariane Labed, Denis Ménochet, Hadas Yaron e Ryan Corr.