Mickey 17 | Impecável, inquieto e irresistível

Talvez o melhor lugar de Bong Joon Ho esteja naquele personalismo que marcou a primeira metade de sua carreira e voltou a dar as caras em O Parasita, o que lhe rendeu o Oscar. Um lugar onde ele estava perto de seus personagens e suas tramas, ainda na Coreia do Sul, com muito menos dinheiro e muito mais sensibilidade. Mas o que fazer quando as possibilidades de ir além disso batem à sua porta, como em Mickey 17?

Muito provavelmente essa oportunidade tenha acontecido com a adaptação da HQ Expressos do Amanhã, seguida de Okja, espécie de aventura meio vegetariana e frenética com muito mais coisas abaixo dessa camada óbvia. O filme do trem apocalíptico também fazia o mesmo: discutia uma mensagem por trás de uma história que nunca fica capenga por causa disso. O espectador que se vire para entender isso.

Mickey 17 é a adaptação de Mickey 7, livro de Edward Ashton. A diferença do número vem com a vontade do diretor coreano de matar o personagem mais dez vezes antes de contar sua história. Mickey Barnes (Robert Pattinson) é um cara qualquer de 2054 que acaba entrando na tripulação dessa nave para fugir de uma dívida, mas acaba escolhendo a função de “descartável”. A ideia é simples: Mickey poderá ser clonado sempre que morrer, portanto, ele é o tripulante perfeito para qualquer missão perigosa ou teste maluco.

A ideia de Bong Joon Ho é, antes de qualquer coisa, ser tão absurdo e maluco que permitirá que qualquer ideia, discussão e metáfora possam ser misturadas no meio dessa comédia insensatamente existencial.

Até onde o sistema poderia ir para ter seu “trabalhador perfeito”? E o que isso faz com essa pessoa? Como o mundo vai lidar com essa ideia em termos éticos, religiosos e pessoais? Joon Ho coloca tudo isso em um liquidificador, bate bem e o que sobra é algo doido. Porém sem nunca deixar de ser poderoso e divertido. As respostas e ideias estão a maioria no próprio filme, mas elas nunca são o ponto principal do filme, sua história continua correndo apesar de todas alegorias que vão sendo cuspidas.

A trama na verdade acompanha o 17° Mickey, que todo mundo achou que tinha morrido, mas acaba voltando e dando de cara com o Mickey 18, o que na verdade, em um rompante de moralidade que não cabe no resto daquele mundo hipócrita, faz com que eles sejam proibidos e exterminados. Mas isso nunca se permite ser chato ou repetitivo, quando o protagonista se descobre frente a frente com seu 18°, o roteiro sabiamente passa a rumar para uma solução que mistura tudo aquilo que estava sendo muito bem preparado até aquele momento. Portanto, a agilidade desse segundo momento vai ganhar o espectador que pode achar que o ritmo cederá um pouco diante de sua linearidade.

E quanto mais a história parece que esquecerá de suas intenções sociopolíticas e rumará para um roteiro “comum”, Bong Joon Ho sempre surpreende com uma frase, uma situação ou uma ideia que lembre o espectador que aquelas ideias em 2054 são apenas um retrato fiel de um hoje que não cansa de surpreender e que já está esgotado de ter que ver absurdos na vida real.

A religião/empresa que explora a viagem espacial para colonizar esse novo planeta, comandada por essa figura meio política, meio religiosa, mas completamente em busca de um planeta “mais puro”, Kenneth Marshall (Mark Rufallo), não parece coincidentemente saído de algum comício dos Republicanos dos Estados Unidos ou qualquer “amigo” deles espelhados pelo mundo, Bong Joon Ho precisa discutir esse problema atual como uma farsa perpetrada por um grupo que parece seguir essas pessoas como gado.

Junte a isso as questões capitalistas dos clones impressos, situações absurdas de trabalho, colonialismos e seus massacres, pode escolher o que quiser, tudo está lá em Mickey 17 e você não vai demorar muito para perceber quaisquer dessas coisas enquanto acompanha a trama principal. Ou talvez essa seja a trama principal e o resto esteja lá para desviar a atenção. Não importa, o que interessa é que Mickey 17 é uma comédia que abraço tudo isso com ainda um visual incrível e um capricho enorme de seu diretor.

Esse visual que serve para construir esse mundo que não precisa ser realista e contemporâneo para discutir aquilo que está nas nossas mãos nos dias mais recentes. Bong Joon Ho já tinha feito isso nos dois outros momentos que foi até Holllywood para criar seu “grande Blockbuster” cheio de estrelas e dólares. E talvez aí esteja uma outra questão, um diretor que faz questão de discutir essas questões globais por meio de suas farsas e comédias quando sai do cinema de seu país para encarar o lugar onde suas críticas mais perduram. A coragem de criar essa fantasia espacial para apontar o dedo para esse ocidente quebrado não precisa vir de fora para dentro, mas sim é necessário tentar implodir aquilo pelo lado de dentro.

Mas seria impossível, mesmo diante de tudo isso, ignorar a pessoa que mais aproveita Mickey 17: Robert Pattinson. A cada dia se mostrando um dos caras mais diversificados e corajosos de sua geração de atores, nada parece não caber nas costas de Pattinson. Melhor ainda, algumas coisas cabem e parecem feitas só para ele. Seu Mickey é incrível, humano, meio idiota, mas completamente firme. Meio perdido e triste, afinal é praticamente a pessoa mais descartável do universo, mas que constata que não quer mais lidar com isso ao descobrir que é mais do que isso. Quando 17 e 18 se encontram, Pattinson brilha mais ainda, com dois personagens que são iguais e, ao mesmo tempo, diferentes. Aceitando o clima farsesco do filme, mas entendendo que ele é o coração de toda essa maluquice.

Seu “Mickey 17” aceita ser apenas uma pessoa descartável, o título do filme não vai para o 18, pois sabe que aquele mundo agora está quebrado e travado. Pattinson vive isso e entende essa dinâmica, seu personagem vai da tristeza e melancolia até entender que o filme da sua vida se chama “Mickey Barnes”, não Mickey 17.

Bong Joon Ho não economiza em nenhum desses detalhes do filme. Tudo é útil para cada pedacinho do filme. Os diálogos entre os Mickeys são maravilhosos, as ideias estúpidas do Marshall de Rufallo são desprezivelmente divertidas, os nativos do planeta são uma mistura de fofura com a insegurança de uma espécie que não “conversa” com nós humanoides. Tudo isso é tão firmemente costurado nessa trama que faz de Mickey 17 um daqueles filmes onde é fácil se perder na oportunidade de experimentar um filme com tantas camadas, piadas e questões. Um trabalho digno de um diretor igualmente impecável e inquieto como Bongo Joo Ho, não importa no tamanho do filme que ele estiver fazendo.


“Mickey 17” (Cor/EUA, 2025); escrito e dirigido por Bong Joon Ho, a partir do livro de Edward Ashton; com Robert Pattinson, Steven Yeun, Patsy Ferran, Cameron Britton, Naomi Ackie, Daniel Henshall, Mark Ruffalo, Toni Collette e Anamaria Vartolomei.


Trailer do Filme – Mickey 17

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