Miss Julie é um filme de época um pouco atípico. Dirigido pela também atriz Liv Ullmann e apenas com quatro atores, sendo que 80% do tempo apenas dois contracenam, chamá-lo de filme de época seria pouco para defini-lo. É também um filme minimalista e intimista. Apesar de todos os elementos de cena geralmente inseridos nesse universo estarem lá, como os cenários grandiosos e as terras a perder de vista, falta o elemento principal: as pessoas. Isso faz com que a narrativa se aproveite desse fato e faça uma longa digressão sobre a relação entre nobres e seus serviçais, especialmente os que não se diferem dos donos de terras em termos de instrução, educação e ambição.
A história se passa no dia do solstício de verão, quando é feita uma tradicional festa para celebrar o evento. Acompanhamos praticamente em tempo real as conversas entre a prestativa e obediente Kathleen (Samantha Morton), o inquieto John (Colin Farrell) e a controversa Miss Julie (Jessica Chastain), filha do Barão e patrão dos dois primeiros. John e Kathleen conversam a respeito do comportamento inadequado de Miss Julie com relação a seus empregados quando esta aparece informalmente na cozinha. A partir daí há uma série de diálogos que jogam através das tentativas de Miss Julie de seduzir John, mesmo sabendo que Kathleen é cortejada por ele. O que ela não sabe é que John é um ser amargurado por não fazer parte daquela vida de luxos, e tudo o que ele gostaria é uma chance de poder mudar de classe social. A presença da indecorosa Miss Julie acaba servindo de estopim involuntário aos seus anseios.
Mesmo tendo uma história simples, o mais fascinante é acompanhar as conversas entre esses três personagens (a quarta personagem, a título de curiosidade, é a própria Miss Julie quando criança, interpretada pela jovem Nora McMenamy nos primeiros minutos de projeção) e entender suas visões de vida em uma época com regras sociais tão rígidas que no imaginário coletivo torna-se impossível sequer pensar em infringir qualquer uma delas. Mesmo assim, a interação entre esses seres humanos nos remete à incontrolável capacidade de mudança em nossa mente, mesmo que esta esteja engessada pelas convenções de uma época. A luta dos três em tentar manterem-se coesos e íntegros a seus valores é o que move o filme, que ao mesmo tempo que economiza personagens economiza cenários.
No entanto, os três atores conseguem ocupar o máximo da tela com suas interpretações acima do comum. Enquanto Jessica Chastain fabrica uma jovem melancólica e inconsciente dos seus atos até que estes aconteçam, e ao revê-los se torna uma figura tão trágica quanto patética, Colin Farrell esbanja sotaque irlandês (a história se passa em um dos seis condados da Irlanda do Norte) que além de se tornar um elemento importantíssimo para a construção da época revela em seu ritmo e sua entonação contrariada os sentimentos de injustiça que seu personagem cultiva aparentemente durante toda sua vida. E se não bastasse, Samantha Morton é a virtude moral personificada de uma maneira tão imaculada que sua autoridade em um inspirado sermão consegue nos fazer tremer mesmo vendo-a de longe através de uma porta.
E é por isso que a segunda metade da história se torna decepcionante, seja pelos diálogos escritos por August Strindberg para a peça em que foi inspirado ou pela adaptação atrapalhada da própria Ullmann, que parece não entender que Cinema não é teatro, e que a ação, mesmo que intelectual, precisa ter alguma coesão para que acompanhemos com o mínimo de atenção. O que ocorre é justamente o contrário, pois os personagens começam a andar em círculos em torno do problema que se instaura e mudam de opinião e de ideia diferentes vezes na mesma conversa. Nem o álcool que foi consumido sem ressalvas poderia justificar tamanho disparate.
Ainda assim, há uma conclusão no mínimo curiosa. Não triste, nem impactante: apenas curiosa. Olhamos para esses indivíduos através da máquina do tempo que é o Cinema e buscamos entender suas mentes condicionadas às regras que se auto-impõem. Ao mesmo tempo, sabemos que há regras no mundo que não permitem que alguém pense muito diferente disso, então existe uma força invisível os forçando a tomar certas decisões. O curioso disso tudo é pensar que é bem capaz que esses ingredientes sejam o suficiente para que essas pessoas tomem qualquer decisão que mantenha o status quo. No mínimo, curioso. Infelizmente, Miss Julie faz com que esse seja o máximo que podemos obter do filme.
“Miss Julie” (Nor/RU/Can/EUA/Fra/Irl), escrito e dirigido por Liv Ullman, à partir de uma peça de August Strindberg, com Jessica Chastain, Colin Farrell e Samantha Morton