O começo de Miss Marx não aparenta caber nas intenções biográficas e clássicas do filme. O rock cantando pela banda Downtown Boys não parece se encaixar em 1883, ano em que Karl Marx morreu. Mas tudo bem, o filme é sobre sua filha, Eleanor “Tussy” Marx e ela também não se encaixa direito naquele mundo.
O filme é escrito e dirigido por Susanna Nicchiarelli e acompanha Eleanor (Romola Garai), filha mais nova de Marx, tendo que lidar, não só com a morte do pai, mas também com seu legado, seus pensamentos e o quanto o pensador alemão transformou o mundo com suas ideias, mas nunca passou perto dessa eficiência em termos familiares.
Mas Miss Marx é sobre ela, não sobre ele. Tussy é uma força da natureza, é conhecida por ter sido a primeira pensadora a misturar as teorias socialistas com alguns temas exclusivos do feminismo. Isso enquanto se tornava uma autoridade na luta por uma situação melhor dos trabalhadores, tanto na Inglaterra, quanto até nos Estados Unidos.
O filme de Nicchiarelli tem foco não só nesse empoderamento da personagem, como também nos custos de uma paixão pelo dramaturgo Edward Aveling (Patrick Kennedy), um relacionamento que acaba sendo a mais provável causa de seu suicídio em 1989. Mas Miss Marx nunca encara esse final inevitável como uma tragédia que move o filme, o que o move é, justamente, a liberdade.
Mesmo com todos problemas e traumas familiares, Eleanor parece estar à frente de seu tempo, enxergando o século 20 antes mesmo dele chegar. Seus discursos são poderosos e pertinentes, suas ideias comprovam suas paixões e isso não abandona a personagens e suas intenções. Essa parece ser a intenção de Nichiarelli, celebrar essa mulher, mesmo com ela perdida em seu tempo. Festejar a vida e não o fim.
Nichiarelli faz um trabalho eficiente e objetivo, suas imagens funcionam e compõe as cenas com clareza. É fácil enxergar o que cada personagem está sentindo, mesmo quando isso está escondido por aquela verdade que, geralmente, se adapta melhor ao mundo ao seu redor. “Tussy” talvez tivesse algo a dizer ou mudar diante de seu amor, mas prefere continuar sendo ela mesma ao invés de se quebrar aos desejos dos outros. Não é ninguém que irá dizer a ela quem é o melhor relacionamento para ela.
Ramola Garai entende essa força e nunca parece expor sua Eleanor Marx. Algo sempre parece ficar separado para um entendimento mais complexo, seja um olhar ou um gesto. Sua “Tussy” não é simples, mas sim poderosa e complexa, entende sua função e sua importância dentro daquele cenário, fortalece sua luta através não do caminho mais esperado, mas sim da força que parece acumular em cada cena até as pequenas catarses de liberdade de sua personagem.
“Tussy” dança ao som de Downtown Boys e de um rock que ainda demoraria mais de meio século a ser “descoberto”, mas que sempre representou a liberdade. Miss Marx é sobre essa liberdade, sobre essa verdade que, assim como os trabalhadores, será sempre oprimida de acordo com quem a conta.
Dessa vez, a visão é da cineasta Susana Nichiarelli, e ela sabe que “Tussy” e Karl são apenas detalhes dentro de um problema muito maior, mas nem por isso não serão escutados e seu espectador poderão refletir sobre tudo isso.
“Miss Marx” (Ita/Bel, 2020); escrito e dirigido por Susanna Nichiarelli; com Romola Garai, Patrick Kennedy, John Gordon Sinclair, Felicity Montagu, Karina Fernandez e Philip Groning
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