Parado na esquina de casa, com uma mochila cheia de livros pendurada nas costas, olhei o céu azulíssimo de dia quente. Usava óculos escuros para evitar o aperto dos olhos no meio de tanta claridade. Baixei a cabeça e vi o carro do Crítico de Cinema chegando. Depois de passar na casa do Poeta, fui o segundo agraciado pela carona para mais uma Feira de Escritores Independentes.
Fechei a porta traseira, acomodei a mochila cheia de livros no banco, dei bom dia aos amigos de longa data e senti o clima estranho. Como o cheiro de fossa antes da chuva e o de terra molhada depois que a água caiu do céu, dá para perceber quando interrompemos um atrito sério.
E o assunto era mais que sério, porque nada pode ser mais sério que a arte: o Crítico de Cinema revoltou o Poeta ao esculhambar Interestelar. Só poderia ser brincadeira, deveria ser piada daquele sarrista. Parecia impossível alguém desgostar de tamanha obra-prima. Desavisado, fui o voto de desempate. De guarda baixa, não tive como me esquivar da pergunta. Como bom murista, disse que acho o filme meio arrastado, interminável. Mas bonito, é um filme bonito. Não que eu achasse Interestelar ruim, como o Crítico de Cinema. Nem que fosse um filmaço, como pregava o Poeta. Mediano, nota cinco também passa de ano. Não desagradei ninguém e talvez tenha sido covarde, mas precisava da carona, também precisava de um bom clima com quem passaria as próximas oito horas ao meu lado, papeando e tentando vender seus livros.
Nos momentos menos lotados da Feira de Escritores Independentes, porque feiras de escritores independentes não são famosas por florestas de público, a pergunta se repetia. Vem cá, chega mais, cola aí, deixa eu te falar uma coisa, estávamos conversando sobre um assunto sério, porque filme é coisa séria, e então: o que você acha do Interestelar? Isso mesmo, aquele do Nolan.
Um filmaço, uma bomba, um dos melhores da década, uma perda de tempo. O Ensaísta do Fim do Mundo, a Cronista Sensível, o Romancista Incompreendido, a Poetisa Incansável. Maravilhoso, piegas, reflexivo, forçado, cheio de mensagens. Chorei quando assisti, chorei por assistir.
Na hora que o Poeta pediu para tomar conta de sua lojinha, o Crítico de Cinema me chamou de canto e cochichou: não acha Interestelar o melhor filme do mundo, nem o pior de todos os tempos. Mas a discussão estava divertida, nem tinha como negar.
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De vez em quando, perco meu restinho de amor-próprio e navego pelo debate público sobre filmes e séries nas redes sociais. Nesses momentos de pura insanidade, marco a missa de sétimo dia para o meu fiapo de bom humor ao me deparar com absurdos e gritarias em prol do tão sonhado engajamento. O profundo incômodo e estranhamento que sinto me faz duvidar dos bons resultados do meu check-up anual.
A necessidade de “detonar” um filme com frases de efeito, sugerindo desperdício de dinheiro dos estúdios numa porcaria. A ânsia por fazer de qualquer obra audiovisual a melhor de todos os tempos da última semana. Chamar um filme de “necessário”, como se não assisti-lo fosse crime hediondo. A chatice dos fãs que se acham donos de filmes e séries, indignando-se porque roteiristas e diretores não seguem suas desimportantes vontades no desenvolvimento de filmes e séries. Influenciadores que se acham críticos de cinema, mas não têm o mínimo de bagagem para exercer a função. Gente que só elogia filmes por medo de desagradar fãs desocupados. Gente criando falsas polêmicas para esculachar filmes. Supostos formadores de opinião propositalmente incapazes de sair de maniqueísmos para garantir cliques e mais cliques.
Num tempo de violação de direitos transmitidos ao vivo nas telas de smartphones, o direito à mediocridade não está livre de ser esquecido, menosprezado, subestimado, vilipendiado. No dia a dia da vida prática, quando o mais ou menos está mais para mais do que para menos, nos conformamos. Quase todo mundo já passou de ano com uma nota cinco. Estar na média não é pecado. Nas pesquisas de popularidade, a avaliação regular não é vista como má notícia.
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Não é fácil identificar uma crítica. Na barulheira da internet, um emaranhado de textos se autointitulam com essa pompa: crítica. Em outros tempos, o filtro era maior, mas as oportunidades de conquistar seu lugar ao sol e aproveitar uma sombrinha e água fresca eram bem menores. Mais difícil ainda é encontrar críticas de qualidade, embasadas, com boa argumentação, bem escritas. Nem toda suposta crítica de cinema é uma crítica de cinema, algumas (várias) são só um resumão, uma sinopse ligeiramente extensa para os padrões digitais.
Segundo o Crítico de Cinema famoso por odiar Interestelar, um bom crítico de cinema não precisa ser chapa branca. Nem tem a obrigação de odiar qualquer filme medíocre, no sentido de mediano, mesmo. Ainda de acordo com o Crítico de Cinema, um crítico de cinema viciado em ser polemista a todo custo pode ser muitas coisas, até mesmo um crítico de cinema, mesmo que isso torne sua credibilidade inferior até mesmo ao Interestelar (não são palavras minhas, mas do Crítico de Cinema).
Vivemos uma epidemia de produtores de conteúdo, seja lá o que isso signifique. Meu Amigo Português é um piadista e já disse que quando vai ao banheiro costuma produzir conteúdo. Maldade, alguém poderá dizer. Ninguém poderá negar que, se em nossos tempos qualquer desavisado se intitula produtor de conteúdo, também é fácil se batizar como crítico para garantir presença em cabines para assistir filmes de graça, ser convidado para festinhas onde será possível tirar selfies com gente famosa e até se fingir de sério em coletivas de imprensa com suas perguntas infinitas e sem sentido.
Na faculdade, diziam que jornalista não pode ser mais importante que a notícia. Muitos colegas de profissão com perfil no Twitter parecem ter faltado a essa aula. E talvez alguns críticos de cinema, e de literatura, e de música, e de esportes, pudessem revisar essa lição antes de berrar diante das câmeras ou escrever em letras maiúsculas que tudo é divino e tudo é maravilhoso, ou tudo é demoníaco e infernal de tão horroroso.
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Até que ponto as tais bolhas e os tais algoritmos interferem na maneira como escolhemos, assistimos e avaliamos os nossos filmes e séries do coração e do fígado?
Desde quando ser chamado de “cinéfilo” virou defeito, xingamento, quase acusação grave?
Na vida fora da internet, existe algum problema em gostar de filmes e séries pouco ou nada complexos, de mera distração, sem reflexões profundas que nos paralisam por horas, dias, ou semanas?
Por que o público gosta de vídeos explicando finais de filmes que não precisam de explicação sem explicação de filme algum no vídeo enganoso?
Qual o sentido em xingar gente desconhecida por gostar ou não gostar desse ou daquele filme?
É ofensivo perguntar se perguntar ofende?
Sei lá, sei lá.
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Na volta da Feira de Escritores Independentes, o clima estava mais leve. Talvez pelos bons papos durante o evento, o encontro com leitores e potenciais leitores, as trocas de experiências sobre essa estranha atividade e mais estranha escolha que é escrever. Vender meia dúzia dos nossos livros anima também, mas não é o mais importante.
O Poeta fez várias perguntas ao Crítico de Cinema sobre aspectos mais técnicos de Interestelar: o roteiro, a direção, os efeitos, as atuações. Essas coisas. Disse que tiraria um tempo para rever o filme, levando em consideração os bons argumentos do motorista, do dono da carona, porque nunca é de bom tom discordar de donos de carona, barbeiros, taxistas e garçons. Mudávamos de assunto, falávamos de outras coisas, mas o eterno retorno de Interestelar era uma realidade.
Acho que o Poeta perdoou o Crítico de Cinema. Mesmo sem crime ou contravenção, o Crítico de Cinema foi absolvido. Não sem antes usar da galhofa em sua defesa, pouco antes de eu descer, agradecer a carona e entrar em casa. Para provocar o Poeta, disse: relaxa, não tem problema nenhum gostar de filme ruim.