Talvez nem eu saiba ainda sobre o que é Nós. Entender sim, enxergar o que aconteceu e acompanhar a ação também, mas a chave para destrancar os segredos do novo filme de Jordan Peele ainda deve estar em algum lugar perdida e esperando para ser encontrada.
E isso não só é maravilhoso, como produz um filme que perdura durante horas e até dias em sua cabeça. Não por falta de entender, mas sim por vontade de desvendar mais e mais. Descascar essas camadas e descobrir novos mundos e significados para toda essa doidera. Mas vamos aos fatos.
No filme, escrito e dirigido por Peele, Lupita Nyong´o e Winston Duke vivem Adelaide e Gabe, pais de uma família que viaja para a casa de praia da família dela depois da morte da avó. Adelaide, na verdade, volta para a praia onde, muitos anos atrás, ainda criança, se perdeu do pai e teve um evento traumático em uma casa de espelhos.
E tudo vai bem até o filho deles olhar para a janela em uma noite qualquer e ver “uma família na entrada”. O que vem depois disso é uma mistura de terror psicológico, gore, teorias de conspiração, a bíblia, coelhos, clones e Ronald Reagan.
A resposta para Nós talvez esteja, não só em um desses itens, mas em todos eles. Porém, o melhor a fazer é deixar isso para depois, primeiro, é bom saber que, não só toda essa maluquice faz sentido, como resulta em um filme inesquecível, extremamente bem feito e que envolve e desafia o seu espectador a acompanhar essa história.
O mais importante, é que mostra um Jordan Peele maduro o suficiente para, nem cair na armadilha de “revisitar” seu grande sucesso (Corra!), nem tentar fazer dele sua marca. Nós é simplesmente diferente e quer ser um desafio completamente novo para quem embarcar nele. O filme com toques de Os Estranhos e Funny Games logo se transforma em algo esquisito, com assassinos deformados e violentos, isso sem contar protagonistas que não estão com a mínima vontade de serem as vítimas clássicas dos filmes de terror.
Peele sabe o terreno por onde está andando, não perde a mão e mostra que é possível fazer um filme de terror competente, inteligente e desafiador, sem apelar para clichês do gênero. O diretor já tinha feito isso em Corra!, mas agora eleva isso a uma potência maior, já que, em certos momentos, é difícil imaginar onde isso vai chegar. Seu filme anterior é intenso e imediato, mas Nós é provocador e instigante.
A câmera de Peele continua clara e segura, com uma pureza objetiva que te permite entender exatamente tudo que está acontecendo, tudo construído de forma que cada peça do quebra-cabeça chame o espectador para montá-lo com ele. Só não vá ao cinema buscando aqueles sustos com o acordes alto, Peele está muito mais interessado no clima, no olhar diretamente para a câmera e no incômoda da presença monstruosa de um vilão que sabe que não precisa se esconder, afinal, tem certeza de que vai ganhar no final (e ganha!).
Falando em spoilers, Lupita Nyong´o tem em mãos um de seus melhores trabalhos da carreira. De um lado a moça insegura, mas que encontra forças para proteger sua família, do outro, esse produto do ódio, sua sombra, deformada por dentro e com uma raiva tão intensa que cria uma vilã amedrontadora. Não só pelos seus atos, mas por uma dor que escorre por seus olhos enquanto recorda o quanto é o produto de uma sociedade que a colocou como arremedo da felicidade que sua “original” tinha. Roubada da possibilidade de não ser um monstro.
E por mais que Winston Duke (o M´Baku de Pantera Negra) seja um poço de simpatia e acerte perfeitamente o tom leve e bem humorado do personagem, o outro destaque do elenco é mesmo o menino Evan Alex, tanto na sua versão Jason, quanto Pluto. Seu olhar inocente e esperto contrasta com a figura animalesca de sua copia e o resultado é uma poesia onde os contrastes se completam como um balé. A força do personagem permanece com ele até o final e um pequeno gesto tem tanto significado quanto uma página inteira de roteiro.
Peele constrói tudo isso, todos esses personagens e possibilidades aos custos de um roteiro intrigante e misterioso. Talvez parte das respostas (o segredo final sim!) esteja na abertura do filme enquanto Adelaide (a verdadeira), ainda criança assiste um comercial do infame “Hands Across America”, campanha criada pelo então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, para ajudar os mais necessitados a terem uma vida melhor. Foram US$ 34 milhões arrecadados, mas US$ 19 milhões gastos com custos operacionais e apenas US$ 15 milhões distribuídos para as populações carentes.
Resumindo, depois de um esforço propagandista, todos continuaram esquecidos, assim como os spoilers que vêm a seguir. E só é preciso discutir isso, pois é óbvio que Peele não criou toda essa complexa artimanha narrativa se não fosse para discutir o assunto. Depois de Corra!, acreditar que o diretor fosse se permitir fazer um filme normal, sem uma mensagem ou crítica embutida em suas entrelinhas, é no mínimo ingenuidade.
O que vem logo aos olhos é mais obvia metáfora desses “clones” representarem essa mesma população ignorada, relegada à camada mais baixa da sociedade, que não consegue ver o sol nascer e é apenas um reflexo distorcido da que está por cima. À distância entre eles é apenas essa escada rolante, um dos símbolos máximos do consumismo e do dinheiro.
Isso nos leva a “Jeremias 11:11”, versículo da bíblia que aparece duas vezes no filme. O trecho fala sobre Deus trazendo sua ira para o povo judeu que não adorá-lo, pois ele “não os ouvira”. No caso, Deus, através de Jeremias, estava reunido com o povo de Israel oferecendo proteção em troca de ser enxergado como único, mas lembrava que existia uma conspiração entre os “homens de Judah” e habitantes de Jerusalém.
Talvez em Nós, essas “sombras” venham agora para a superfície através da promessa divina de que serão protegidas diante dessa conspiração. E a esses que não estão “do seu lado”, suas preces não serão atendidas. Mas você pode perguntar, “e a roupa vermelha?”, “e o Hands Across America?”, “e aquela frase que a sombra de Adelaine sussurra com dor ‘somos os americanos’?”. Pois é, tudo pode ficar ainda mais divertido!
E se ao invés de “população relegada” estivéssemos falando do crescimento exponencial da estrema direita nos Estados Unidos? Nós foi pensado e realizado inteiramente dentro da administração Trump, resultado de uma mudança de mentalidade americana que faz com que essa fatia da sociedade, que se dizia ignorada pelas mudanças do mundo, estivesse calada. O discurso de Trump, entre “Faça a América Grande de Novo” e outras frases de efeito, sempre apontava a direção de trazer o país de volta para, justamente, os americanos.
Na eleição de 1984 nos Estados Unidos, o eleito Ronald Reagan, diante de um estado da Califórnia todo pintado de vermelho com as cores do partido Republicano (entendeu?), só perdeu em cinco regiões. Santa Cruz, onde Nós se passa, foi uma delas. Portanto, Aquele “Hands Across the America” que passava na TV no começo do filme olhava para uma Califórnia republicana, com pequeno ponto de oposição, bem diferente do estado azulado e democrata da última eleição.
A raiva, o ódio pelas classes mais baixas (Adelaide e sua família), a vontade de se tornar elite (como vestem as roupas da família rica) e uma aparente incapacidade intelectual são características que a esquerda sempre projeta nessa extrema direita vigente. Essa mesma que subiu ao poder e faz questão de apontar que estão unidos diante da crença de que Deus irá “abençoa-los já que acreditam nele”, enquanto o “resto” não será ouvido.
Já a tesoura, significa apenas esse objeto simétrico e praticamente espelhado que ele é. Como se duas partes iguais convivessem diante de um único objetivo, o de cortar. Ou nesse caso, matar. Agora, eles estarem sempre na mão direita, vestida com uma daquelas luvas marrons e sem os dedos, talvez corrobore com a teoria dos parágrafos anteriores.
O último ponto da equação pode até ser os coelhos, que obviamente remetem à Alice “seguindo o coelho branco”, mas também podem representar esse modo quase idêntico de reprodução, onde cada animal se diferencia tão pouco do outro. Como os clones/sombras, ou talvez como essa extrema-direita que se move cegamente através dos caminhos de seu líder e único com voz dentro da multidão.
Se tudo isso está certo? Obviamente que ninguém terá certeza a não ser que Jordan Peele venha a público acabar com a diversão. O que é claro, é que toda visão é válida e Nós é, justamente, isso, um convite para o espectador buscar um jeito de destrancar esses segredos e desvendá-lo com as chaves que encontrar. Seja na hora que sair do filme, horas, dias ou o tempo que precisar depois disso.
“Us” (EUA, 2019), escrito e dirigido por Jordan Peele, com Lupita Nyong´o, Winstosn Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Shahadi Wright Joseph e Evan Alex