[dropcap]N[/dropcap]os Vemos no Paraíso tem a estrutura de um conto de fantasia, ou uma peça de teatro, mas consegue espaço para expandir timidamente sua história através de cores, arte, música e ação. Muita ação.
A ação do filme é anedótica. Seus personagens são caricatos desde o começo. Até os agentes do governo, por exemplo, lembram urubus comendo a carniça o quanto podem (em uma cena vemos um fiscal devorando uma asinha de frango enquanto se prepara para tirar o máximo que puder de um serviço de enterro de soldados mortos na guerra). A história é sobre uma amizade, ou parceria, que encontra momentos de amor, ódio, medo, ambição. Como na guerra, um misto de emoções define melhor as pessoas envolvidas. O pano de fundo é a corrupção, íntima de cada um de nós ou sistêmica, com um viés mais ou menos político.
Mas este também é um filme francês de época. Logo após a primeira guerra. Como todo filme francês é exagerado na sua exaltação da arte do começo do século, o que se confunde com sua própria textura, escura, como uma projeção, e com cores que flertam com o bucólico infanto-juvenil de uma Paris sendo sonhada para a telona. As casas, as ruas, as pessoas, o bairro de Belleville (quase imaginamos a cantora Édith Piaf, que nasceu no bairro, andando pelos seus becos), Moulin Rouge. Tudo está misturado lindamente. Podemos até nos distrair pela beleza enquanto acompanhamos uma história feia.
A história brinca com vida e morte. Mais a morte. Em época de guerra, os que lucram com a morte sempre a exaltam. Se torna uma quase brincadeira de mau gosto quando percebemos que praticamente todas as pessoas do filme exploram a morte. Seja mocinho ou bandido, idiota ou inteligente, a morte é o caminho da salvação dos que estão vivos. Até a morfina, uma morte lenta pela ausência de dor, entra na jogada, como moeda de troca (e roubo).
Este é o velho conto do soldado desfigurado, que já chegou em pedaços psicologicamente e na guerra recebeu seu destino fisicamente, perdendo sua maxilar. Sendo um artista, isso é explorado no filme através de diferentes máscaras carnavalescas, que viram uma atração à parte. Como espectadores, viramos cúmplices em apreciar a triste beleza de um filho (Nahuel Pérez Biscayart) que foi renegado pelo pai (Niels Arestrup) por desenhar lindamente e não se preocupar com os negócios da família. Agora ele não possui a própria boca para expressar o que sente, mas ele é um artista, e de suas esculturas faciais e seus grandes e expressivos olhos surge algo muito mais poderoso.
Ao mesmo tempo, temos seu companheiro do front, Albert Maillard (Albert Dupontel), cuja vida foi salva pelo soldado-artista antes dele morrer sufocado, indo buscar seus últimos suspiros de um cavalo moribundo. Mais tarde, em meio às máscaras confeccionadas pelo personagem de Nahuel Biscayart, ele confecciona uma cabeça de cavalo para Albert, e a alegoria se fecha: ele se torna o cavalo que o salvou, e o rapaz desfigurado, incapaz de falar corretamente, relincha como um cavalo. As alegorias pulam de personagem em personagem, e é difícil caracterizar cada um deles quando todos se parecem. A mensagem do filme, se é que há alguma, se perde na tradução desses sentimentos.
No meio da história fiquei com medo deste ser um filme de Jean-Pierre Jeunet, que é um excelente contador de histórias dentro de mecanismos que se sobressaem aos seus personagens, um padrão que tem tudo a ver com Nos Vemos no Paraíso. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, Micmacs – Um Plano Complicado, Uma Viagem Extraordinária. Tudo nos leva a Pierre Jeunet, menos o peso do tema, e é apenas isso que separa o filme do diretor Albert Dupontel das obras mais fantasiosas de Jeunet, e nos permite acompanhar esta história sem face como se ela fosse relevante.
Ou quase. Fechando seus arcos de uma maneira conveniente demais, apesar de necessários, o filme perde o elemento surpresa muito rápido, não nos dando tempo de sentir seus personagens como se eles fossem reais. Isso faz perder o peso de toda a narrativa, e consequentemente sua mensagem anti-bélica. E o que nos faz voltar à atmosfera de um conto. Um conto que, podendo se passar em um palco, começa e termina em uma delegacia de Marrocos em 1920, na exótica e longínqua África. Os antigos épicos adoravam isso. Aqui tudo soa embrulhadinho demais. Mas apesar disso, um entretenimento de primeira.
“Au revoir là-haut” (Fra/Can, 2017), escrito por Albert Dupontel e Pierre Lemaitre, adaptado do livro de Pierre Lemaitre, dirigido por Albert Dupontel, com Nahuel Pérez Biscayart, Albert Dupontel, Laurent Lafitte.