Nosferatu | Sexy e grotescamente lindo

Enquanto em 1922, o cineasta alemão F.W. Murnau parecia preso a questões como o expressionismo local, um certo romantismo gótico e um jeito de “fugir” do material original de Bran Stoker sem “fugir muito” (graças aos direitos autorais). Mais de cem anos depois, Robert Eggers tem objetivos completamente diferentes. O que é ótimo para esse novo Nosferatu.

Diferentemente do remake de 1977 de Werner Herzog, que ficava vagando entre o material original e Drácula de um jeito que homenageava mais do que criava algo único, Eggers vai além do tributo e cria uma obra de arte especialmente nova, mesmo sem renegar nem por um frame sequer aquele clássico estrelado por Mas Schreck, que entrou para a história do cinema e mudou tudo aquilo que veio depois. Incluindo toda carreira de Robert Eggers.

Não existiria Robert Eggers sem Nosferatu e vice-versa, já que esse novo filme, sem a coragem do diretor, muito provavelmente, poderia cair em uma mesmice cansada de refilmagens ou até em um problema maior ainda: o de tentar agradar um público maior e mais amplo do que deveria. Nada disso acontece e o resultado é um novo Nosferatu indigesto e que discute assuntos tão contemporâneos que fazem com que sua obre seja quase tão única quanto a original.

Os logos do estúdio remetendo à época do filme de Murnau abrem as portas para uma ideia que acaba ali. O Nosferatu de Eggers nunca tenta ser um filme de 1922, muito menos está preocupado em refazer, copiar ou homenagear qualquer coisa que não seja pelo bem de sua história. O resultado é uma personalidade incrível de um material que foge pouco daquilo que já tinha sido contado. Principalmente, porque esse “pouco” faz uma diferença enorme.

A história continua quase a mesma. Um casal recém-casado vai precisar de separar por um tempo enquanto ele, Thomas Hutter (Nicholas Hoult), precisa ir até a Transilvânia fechar a compra de uma propriedade local com um tal Conde Orlok (Bill Skarskgard). Já ela, Ellen Hutter (Lily-Rose Depp) permanece em Wisborg enquanto o marido viaja, mas fica por lá com um pressentimento de que ele não deveria ir, afinal ela tem sonhos premonitórios e pesadelos que a perseguem desde criança e apontam para o perigo dessa viagem.

É nesse ponto que começam as bem encaixadas mudanças de Eggers. O visual clássico do vilão fica de lado quase como uma consagração, como se aquilo fosse tão intocável e perfeito que não deveria ser tocado. Isso e uma vontade do diretor de entregar um filme que quer ser ele próprio, mais historicamente preciso e com uma vontade de ser ainda mais vil, violento, cru, explícito e provocante. A recriação de época é precisa e objetiva, mas, ao mesmo tempo, permite criar um mundo de uma escuridão amarelada e meio podre, onde essas pessoas estão à beira da razão. Prestes a serem confrontadas por um desconhecido que irá condená-las.

O Orlok não é mais uma criatura vampiresca, mas sim um monstro decrépito que parece ter vivido cada ano de sua eternidade em meio a esse castelo destruído pelo tempo. Sua figura não cabe na “moderna” cidade alemã e seu confrontamento com Ellen o deixa ainda mais monstruoso. Eggers está o tempo inteiro buscando esse questionamento sobre o quanto tudo ali está a um passo da escuridão, mas quando esse limite é ultrapassado o que sobra é violento, intenso e desgarrado de um questionamento moral da época. Que serve para lá, para aquele ponto do século 19, mas reflete no hoje em tantos momentos que é impossível não ficar admirado com as intenções de Eggers.

Em certo momento, o Professor Von Fraz vivido por Willem Dafoe comenta o oculto sendo aquilo que o “mundo moderno” não soube lidar e simplesmente relegou para escuridão qualquer tentativa de entendimento. Como se convidasse o espectador a aceitar o quanto Ellen representa esse oculto de um jeito perturbadoramente moderno.

Uma mulher que está sendo castigada por ter se entregado ao desejo e à sua libido. Seu contato com Orlok vem de uma ligação onde seus prazeres se encontram em nível mais que carnal. Seus pesadelos a colocam em um torpor que beira o violento, mas que o diretor enxerga como algo sexual e que assusta os homens ao seu redor. Eggers está o tempo inteiro discutindo essa culpa pelo prazer e o quanto a violência invasiva pode ter faces tão diferentes. Thomas tendo o sangue sugado por Orlok é encaixado como uma cena de sexo. Os ciganos que moram perto do castelo do vampiro lhes oferecem uma virgem nua sobre um cavalo. O desejo do amigo de Thomas vivido por Aaron Taylor-Johnson ultrapassa a vida e transforma um momento derradeiro de amor em um ato condenável e chocante. A cena final olha para o vilão como o resultado de um êxtase proibido, como se a decisão de aproveitar aquele momento ultrapassasse o limite da mortalidade até daquele que, teoricamente é imortal.

Eggers não extrapola isso, vai o construindo aos poucos junto desses pesadelo etéreo que parece ir rasgando a realidade dos seus personagens. Fugir do olhar de sua protagonista até beirar o incômodo, mas sempre criando essas sensação de que tudo está caminhando para um lugar trágico, não do romântico, mas sim do escabroso, da peste, dos arrependimentos e do desespero. Ellen é consciente de seus pecados, assim como Eggers vai colocando-a nesse lugar, mas o resto de seus personagens parecem perdidos diante dessas ruas sem saídas.

E cada passo, grito, rugido e estalar da madeira vai montando esse mundo onde o som é tão importante quanto o resto da história. Como se as sombras não conseguissem conter esse ambiente que parece saído de algum sonho tão ruim que incomodo e te faz querer virar a cara. A voz gutural de Orlok é o resultado de um trabalho vocal impressionante de Skarskgard, que mistura as línguas e cria uma sonoridade única e desesperadora. A decisão de esconder a figura nas sombras o máximo que a câmera consegue é uma oportunidade de aproveitar essa voz que parece sair das entranhas de algum tipo de inferno de onde saiu essa criatura.

Esse jogo de câmera e de composição é algo que parece sutilmente ganhar o filme. Como se a direção de fotografia economizasse nos movimentos em homenagem ao original, mas construísse planos complexos apenas com as composições e movimentos do elenco. Um plano detalhe pode surgir sem sequer dar nenhuma pista de sua existência no começo da cena, quase como se a tela do filme se transformasse em pleno olhar do espectador. O resultado é uma experiência absolutamente poderosa, sexy e grotescamente linda.


“Nosferatu” (EUA/UK/Hun, 2024); escrito e dirigido por Robert Eggers; com Lily-Rose Depp, Nicholas Hoult, Bill Skarsgard, Aaron Taylor-Johnson, Eillwm Dafoe e Emma Corrin


Trailer do Filme – Nosferatu

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