Se eu fosse canastrão, começaria esse texto simulando um estilo supostamente bem-humorado, como se piscasse marotamente para quem me lê, e meus raros leitores e escassas leitoras entenderiam a referência a reuniões como as do Alcoólicos Anônimos. “Bom dia, meu nome é Leandro Marçal e estou há dois dias sem assistir novelas”, seriam as primeiras palavras. “Só por hoje, não vou ver a novela das nove. Só por hoje, não vou falar do capítulo de ontem!”, seria a supostamente bem-humorada frase de encerramento.
Mas não sou canastrão, nem bem-humorado, esse texto é sério (muito sério!) e não vou piscar para ninguém. Quero tratar de um assunto urgente, pouco abordado na mídia. Tenho amizades absolutamente fissuradas em novelas. Gente capaz de passar horas e horas falando dos melodramas antigões, apta a comentar os dramalhões exibidos em horário nobre, especializada nas tramas clássicas encontradas no streaming, pós-graduada nas reviravoltas das seis, das sete, das oito que há muitos anos começa bem depois das nove.
O grupo de encontro Noveleiros Anônimos é um trabalho social sem fins lucrativos ou apoio do poder público. Nele, pessoas absolutamente viciadas nesse formato audiovisual tão brasileiro comentam suas experiências. São homens e mulheres de todas as orientações sexuais, de todas as classes sociais, de todos os graus de escolaridade, absolutamente petrificados em cada capítulo. Tem gente versada nas produções sul-coreanas, infelizes que aprenderam o idioma espanhol por conta das absurdas telenovelas mexicanas e até mesmo (pasmem!) quem ama as intermináveis novelas norte-americanas.
Como um escritor comprometido com pautas humanitárias, faço questão de acompanhar de perto, para fins de estudo comportamental, as reuniões do Noveleiros Anônimos. Alguns encontros são divertidos. Outros, emocionantes. Mesmo o mais bruto dos corações não consegue resistir às lágrimas ao fim dos encontros.
Precisamos falar sobre a ausência de formadores de opinião começando frases extensas e em tom de urgência com um precisamos falar sobre a dependência emocional (e química?) em novelas.
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Não assisto novelas, mas minha avó assiste. Quando passo pela sala, acabo me informando involuntariamente sobre as maracutaias de vilões e mocinhos feitos de besta.
Uma das personagens mais carismáticas do Noveleiros Anônimos é a Dona Enciclopédia*. Com muitas horas de voo em frente a TV, é capaz de citar personagens de décadas atrás. Sabe todas as tramas e subtramas de qualquer novela já exibida em algum aparelho de 14 polegadas dos rincões do Brasil. Consegue citar sem consultar o Google os nomes de autores, diretores e protagonistas em poucos segundos. Dona Enciclopédia é incrível. Se eu não fosse um escritor sério, pensaria nela como uma personagem fictícia criada por mim para dar molho a este texto.
Nada contra novelas, tenho até (muitas!) amizades que assistem, que não respondem mensagens durante a exibição dos capítulos, ou que fazem uma verdadeira transmissão em tempo real em grupos de WhatsApp e outras redes sociais, fazendo do celular uma segunda tela.
O Comentarista é um desses tipos. Faz análises detalhadas sobre cada capítulo e personagem. Consegue destrinchar uma cena como se desossa um frango, buscando sinais ocultos e possíveis desdobramentos de cada fala ou ação. Nos encontros do Noveleiros Anônimos, é visto como alguém folclórico, excêntrico. Em bom português brasileiro, é um xarope. Mas todo mundo para e ouve, batendo palmas para o maluco dançar, como se diz no meio acadêmico.
Não vejo novelas, mas estou sempre bem informado. Antes, lia os resumos de cada capítulo na editoria de entretenimento dos jornais impressos. Também parava em frente às bancas para ler as manchetes daquelas revistas com spoiler (antes mesmo de falarmos a palavra spoiler) das principais novelas. Agora, acompanho os perfis das próprias emissoras antecipando o que há de vir nas tramas rocambolescas. Não é interesse pessoal, é motivação profissional, não posso ficar por fora desses assuntos se quiser me manter atualizado.
Quem sempre concorda com a Dona Enciclopédia é o Senhor Saudosista. De hora em hora, ele reclama das novelas atuais, porque antigamente era tudo melhor, porque as histórias eram mais consistentes, porque as atuações eram mais convincentes, porque o público era mais exigente. Essas coisas. Para o Senhor Saudosista, nenhuma novela atual presta, mas não perde um único capítulo.
Nesse estudo do comportamento humano de acompanhamento das reuniões do Noveleiros Anônimos, outros personagens também se destacam: tem o Roteirista Amador, que já rascunhou muitos capítulos de suas próprias novelas, mas nunca teve a oportunidade de ser visto pelo mercado audiovisual brasileiro; tem a Antinoveleira, que odeia toda e qualquer novela do presente e do passado e do futuro, acha tudo uma merda malfeita, e não passa mais de duas horas sem falar de novelas; tem o Teórico, sempre procurando alguém para explicar que só é novela se for obra aberta, que novela não é série, que novela tem capítulos e não episódios; tem também a Maria Autoria, que só assiste novelas escritas por este autor, se for por aquela autora, já odeia antes mesmo da estreia. Tem mais, tem muito mais.
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Eu não recusaria (de jeito nenhum!) um convite profissional para escrever novelas. Nem tanto por um possível salário fixo e gordo, nem por um desejado contrato CLT, nem pela óbvia exposição do meu nome nos créditos em horário nobre, nem mesmo pela vaidade pessoal de ver minha história exibida na casa de milhões de brasileiros e brasileiras. Não recusaria apenas pela experiência, mesmo. Mas repito: raramente assisto fragmentos de capítulos de novelas. Não por preconceito ou despeito. Só não quero me prender à TV por tantos meses, sofrendo com reviravoltas, chorando com mocinhos e odiando vilões. Mas como bom brasileiro, não posso ignorar novelas.
Se você sente as pernas tremendo no primeiro capítulo, se dá um frio na barriga ao ouvir a trilha de abertura, se toma ansiolíticos nas últimas semanas, se gasta horas vendo atualizações de páginas novelísticas, não se sinta só. Peça ajuda. Nas reuniões do Noveleiros Anônimos, você será acolhido(a) com afeto, atenção e escuta ativa. O N.A. aceita gente de todas as idades e classes sociais, com todos os comportamentos e gostos pessoais. Até escritores canastrões têm espaço aberto nos encontros, que acontecem depois das dez e meia da noite, para não coincidir com a exibição de certos eventos na televisão aberta.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dessas pessoas, que sofrem profundamente com o vício em novelas e não merecem mais sofrimento pela exposição.
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Texto delicioso de ler, todo brasileiro se reconhece