O Assassino, novo filme de David Fincher, não é um estudo de personagem. Muito pelo contrário até, é muito mais um olhar burocrático sobre um profissional em sua labuta, movido pelo desespero de ver que seu contratante enxergou o quanto ele é obsoleto e substituível, o que o leva a uma luta contra o próprio sistema que ele achava que o protegia.
É lógico que, por estarmos falando de um cara que comete assassinatos via contratos, a trama vai um pouco além disso, mas a lógico de Fincher nunca sai disso, de uma vingança sim, mas com um pragmatismo e um quase niilismo diante da sociedade que o cerca. Como se entendesse que ele é só mais uma peça na grande engrenagem, que passa despercebido e que suas ações fazem pouca ou nenhuma diferença na sociedade, mas, ainda assim, é um trabalho.
Do assassino vivido por Michael Fassbender você acaba sabendo pouco, de seu gosto musical por The Smiths e séries dos anos 70 e 90 (de onde tira seus “nomes”), de uma facilidade enorme para digressões em seus pensamentos e de uma esposa na República Dominicana (Sophie Charlotte), lugar onde usa de refúgio.
A música e os pensamentos você descobre logo de cara, enquanto a única companhia que o espectador tem no filme é dele esperando pacientemente por dias do outro lado do prédio de seu alvo. A voz do personagem viaja por impressões do mundo e toda sua mecânica de trabalho. O roteiro de Andrew Kevin Walker, que já tinha trabalhado com Fincher em Seven, é baseado na HQ francesa de Juc Jacamon e Alexis Nolent e tem claramente esse foco no ritmo.
Fincher faz os primeiros 16 minutos do filme parecerem horas, tirando o glamour da profissão e aquela possibilidade de colocá-lo no papel de herói, e entregando para o espectador alguém tão pragmático e preciso que não deixa espaço para qualquer tipo de sentimento ou emoção. Um preparo longo para apenas uma única ação, o tiro e o fim de seu trabalho. Tudo é absolutamente organizado para esse único momento, que quando não sai como desejado, coloca o protagonista em um caminho que talvez nunca tinha lidado.
Mais tarde descobre que sua fidelidade à empresa não serviu de nada, mas isso não desperta qualquer emoção no personagem, mas sim o permite cumprir sua função no mundo mais algumas vezes antes de uma aposentadoria.
O Assassino não é sobre um matador tendo que entender seus novos sentimentos de raiva e vingança, mas sim sobre alguém que parece não perder a calma e a precisão mesmo diante da motivação que tira do sério 99% dos heróis de ação do cinema. Fincher e Walker tem claramente isso em mente, a possibilidade de fazer um filme de vingança, mas diferente, com um ritmo que sai do esperado e faz com que aqueles primeiros 16 minutos voltem outras e outras vezes enquanto ele faz seu trabalho mais algumas vezes.
O resultado é cru e cruel, mas, ao mesmo tempo, com um ritmo que vai se repetindo como um mote. Quase um refrão. Uma canção que tem seu jazz e improviso, mas tem mais cara de um pop meio gótico com frases marcantes e que não saem da cabeça. É lógico que no meio disso uma espécie de solo faz o espectador lembrar do quanto gostaríamos de ver Fincher dirigindo mais filmes de ação propriamente ditos, mas é uma quebra que parece estar lá para salientar o ritmo real do filme.
O mais legal desse ritmo é entender o quanto o personagem é preciso, não erra e nem se deixa levar por qualquer tipo de sentimento, como um mantra que se repete em sua cabeça. Não há espaço para erros, então ele estará sempre um passo na frente de todos, ainda que isso seja quase frustrante para o espectador que espera qualquer tipo de reviravolta ou surpresa. Elas não veem depois do começo. O que chega é a precisão prometida pelo personagem naqueles lentos primeiros 16 minutos, não seu erro.
Fincher é meticuloso em casa cena, plano e decisão. Nada parece sair do seu controle e isso não só dá ao filme uma personalidade enorme, como dá a Fassbender uma oportunidade incrível de, mais uma vez (como em Shame), construir um personagem que parece desfigurado de qualquer emoção ou sentimento que o atrapalhe naquela jornada. Uma jornada não de auto descobrimento ou qualquer outro clichê, mas sim de entendimento de seu papel dentro da sua própria vida e do quanto ele desaparecer na multidão, e pode ser isso que irá salvá-lo. Quase um ode á uma mediocridade imposta pelo sistema, uma sensação de que ele não pode ser ninguém além dele enquanto tudo estiver sendo movido e empurrado por gente que nem ao menos sabe o quanto seus erros podem determinar a vida ou morte de gente que está muitos andares abaixo.
Ao seu lado, mesmo que por poucos minutos, Tilda Swinton surge mais uma vez extraordinária para tentar entender ou empurrar o protagonista para qualquer tipo de zona de desconforto emocional ou motivação, mas o que ela encontra é apenas mais uma vez a burocrática verdade que move o assassino. Essa sensação de que aquilo que precisa ser cumprido, agora sem erros, sem confiar e estando sempre a um passo de suas vítimas.
Durante todo tempo Fincher aposta nessa tensão, como se permitisse sempre que, seja por um segundo sequer, o seu protagonista perdesse sua precisão e frieza, mas isso não acontece. Seu objetivo é outro, o de fazer um filme duro, firme e fino. Que talvez seja mais do que um estudo de personagem, mas sim um estudo de um profissional.
“The Killer” (EUA, 2023); escrito por Andrew Kevin Walker, à partir de uma HQ de Alexis Nolent e Luc Jacamon; dirigido por David Fincher; com Michael Fassbender, Tilda Swinton, Charles Parnell, Arliss Howard, Kerry O´Malley, Sophie Charlotte e Sala Baker
SINOPSE – Um assassino de aluguel falha em sua missão e precisa lidar com seu erro, ainda que isso signifique enfrentar seus antigos contratantes e perceiros de profissão.
Trailer do Filme – O Assassino