Quando as luzes da sessão de O Auto da Compadecida 2 acenderam, meu filho de nove anos me disse baixinho: “Gostei… mas achei meio longo demais, muito maior do que o primeiro não é?”. O pequeno não estava tão errado assim, o segundo filme é realmente mais comprido do que o primeiro, mas apenas 10 minutos. Mas a gente estava dentro do cinema e eu não respondi tudo isso para ele, apenas falei: “é porque filme quando é mais chato, parece que não passa”.
Mas meu filho tem apenas nove anos, não espero essa maturidade toda dele. Entretanto, o resto do pessoal poderia ter e pararem de viver entupidos de naftalina e começarem a viver o real tempo onde estão. O filme de 2000 foi um campeão de bilheterias com mais de dois milhões de espectadores, chegou até a ganhar quatro prêmios do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, mas fez tudo isso sendo capenga e levando as pessoas aos cinemas por ter sido um sucesso na TV no ano interior.
Com mais ou menos 160 minutos de história na TV Globo chegou ao cinema com menos de 90 minutos de trama e apenas correndo atrás da meia hora final de João Grilo sendo julgado por Jesus, o Diabo e a própria Compadecida. Sua qualidade era tão boa na minissérie, tão completa, divertida e inteligente que as pessoas foram ao cinema ainda com essa imagem fresca e até hoje são capazes de misturar as duas lembranças para celebrar o filme em todas suas falhas.
Isso só acontece, pois ainda assim, O Auto da Compadecida (o filme) é suficientemente bom para funcionar em todas suas intenções, menos do que podia, mais do que muita gente esperava. Quase 25 anos depois, O Auto da Compadecida 2 só tem isso em mãos para seduzir os espectadores: suas boas lembranças.
O filme continua sendo dirigido por Guel Arraes, agora com a parceria de Flávia Lacerda, que sai da televisão para tentar uma carreira no cinema. Quem faz o que no filme, pouco importa, a verdade é que Arraes sempre arranca trabalhos extraordinários de seu elenco, o que não muda aqui. Portanto, se uma coisa vale a pena em O Auto da Compadecida 2 são as atuações.
E quando você tem em tela um Humberto Martins, reconhecido pela sua canastrice novelesca, aqui incrível, mesmo com pouquíssimo tempo de tela, tudo pode acontecer. Matheus Nachtergaele e Selton Mello continuam delicadamente divertidos e farsescos, com o primeiro ainda surfando em uma “ego trip” que o permite experimentar mais alguns personagens diferentes através de uma desculpa furada do roteiro, ou falta de orçamento para chamar mais atores em participações especiais. Eduardo Sterblitch também está lá em algum lugar, mas com um arco que acaba meio sem acabar. Mas tudo no filme é meio assim.
Chicó (Selton Mello) está lá ainda na mesma cidade, agora toda em estúdio e “igualzinho” ao Volume (esquema da Disney onde são feitas as séries de Star Wars e envolve painéis de LED), ganhando um pouquinho de dinheiro contando a história da morte e ressurreição de seu amigo João Grilo (Nachtergaele), que sumiu na vida depois dos acontecimentos do primeiro filme. Mas obviamente ele agora está de volta e vai tentando juntar um pouco de grana com um monte de ideias escabrosas, agora todas envolvendo os dois candidatos a prefeito vividos por Sterblitch e Martins. E só.
Sim, é melhor não se empolgar muito com nada, já que o único objetivo de O Auto da Compadecida 2 é afagar as memórias efetivas dos fãs mostrando como alguns dos personagens ainda estão e dando um jeito meio sem pé nem cabeça de matar João Grilo para ele ser novamente julgado. Mas isso não faz realmente muito sentido, as motivações são frágeis e os personagens vão desfilando de modo meio exagerado e teatral como se nem eles estivesse entendendo o que está ou não acontecendo com eles.
Por isso que é esquisito ir acompanhando, por exemplo, a trama envolvendo o Arlindo de Sterblitch e em certo momento não entender a razão do filme observar ele criar uma rádio novela que não tem absolutamente qualquer ligação com o resto da trama. E nesse mesmo buraco se vai a personagem de Fabiula Nascimento que ninguém conseguiria explicar realmente qual a razão dela estar lá.
É importante lembrar que a genialidade do primeiro O Auto da Compadecida pode até parecer que veio da Globo e de Guel Arraes que levaram esse pedacinho do Nordeste para o Brasil inteiro, mas, na verdade, o que fica claro com o segundo filme era que o acerto estava no colo do real pai da história, Ariano Suassuna.
Sua peça de teatro em três atos que deu origem à série é de 1955 e já era muito famosa e celebrada antes da Globo e Arraes “descobrirem” ela. Mas Suassuna faleceu em 2014 e não teve nada a ver com essa sequência desembestada e mais capenga ainda que o primeiro filme. O segundo filme não tem nada do autor, nem ao menos foi baseado em nenhuma das suas outras obras, só queria mesmo fazer mais uma grana em cima do pessoal que ficou esses anos todos celebrando o primeiro por algo que nem ao menos ele era (ou é).
Será que em vez de um O Auto da Compadecida 2, que não precisaria existir, meu filho não merecesse uma nova e inédita história de Ariano Suassuna nos cinemas? Mais uma celebração desse mestre da língua portuguesa. Como que tenho tanta certeza disso? Não sei, só sei que é assim.
“O Auto da Compadecida 2” (Bra, 2024); escrito por Guel Arraes, João Falcão, Adriano Falcão e Jorge Furtado; dirigido por Guel Arraes e Flávia Lacerda, com Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Virginai Cavendish, Tais Araújos, Aduard Sterblitch, Humberto Ramos, Lúis Miranda, Fabiula Nascimento e Enrique Diaz.