Talvez o jeito mais fácil de observar O Brutalista seja o mais óbvio: entendê-lo como o próprio movimento que inspira seu nome. Minimalista, angulado, monocromático e, obviamente, bruto. Quase violento como um acidente de trânsito que você não consegue desviar o olhar quando passa por ele.
Mas tudo isso tem um objetivo, um significado, uma lógica que está ligada tanto à estética, quanto à narrativa por trás daquela construção. Suas paredes firmes, altas e de concreto escondem sempre uma história, uma intenção. Porém, se você não entrar no lugar e olhar ao redor, não verá o que está por fora. E se por fora aquilo parecer uma caixa de concreto, muito provavelmente é porque você não a desvendou. Sim, O Brutalista precisa ser desvendado e isso faz dele uma experiência única e como a gente vê pouco no cinema atual.
Nos anos 40, o brutalismo era uma reação à nostalgia da arquitetura da época, hoje, O Brutalista (o filme) é quase uma reação a um cinema refém dos cortes apressados e uma sensação de linha de produção. Quando todo mundo parece ter a mesma cara, O Brutalista é diferente, e isso faz dele ainda mais único. Filmado em Vistavision, uma versão do 35mm que possibilitava imagens enormes e que foi um sucesso nos anos 50 e 60 em Hollywood, O Brutalista é igualmente gigante na tela.
Diferentemente dos grandes clássicos de Hollywood que usaram o mesmo formato, O Brutalista não é um épico comum (ainda que seja um épico), sua profundidade das cenas é quase cansativa de tão longa (propositalmente!), mas as composições e posicionamentos de câmera do direto Brady Corbet e do diretor de fotografia de Lol Crawley são intimistas, próximos e granulados. Como se tudo estivesse perto do espectador, porém pequeno diante daquele mundo. Assim como seu protagonista László Tóth (Adrien Brody).
Tóth é um arquiteto sobrevivente do Holocausto e que chega aos Estados Unidos com a esperança de quem sabe apenas subsistir. O olhar da Estátua da Liberdade quase de cabeça para baixo em um primeiro momento é quase o resumo de sua nova vida. Sua fama no “velho continente” não vem com ele através do Atlântico, portanto, seus primeiros dias na América são quase como um pesadelo de impressões e miséria. Sua esposa e a sobrinha ficaram para trás em Budapeste, e o pouco de confiança que ele tem nesse novo mundo vai ruindo a cada passo que ele dá.
As oportunidades aparecem para Tóth, mas o resultado é sempre uma disputa por poder onde ele não tem chance de se sobressair. A honestidade e a fragilidade do personagem estão nessa paixão dele pelo seu trabalho e pela possibilidade de criar. Sua arquitetura é construída através de medo e da raiva, mas sua capacidade de surpreender as pessoas ao seu redor com tamanha beleza e genialidade o colocam naquele mesmo lugar de onde ele veio. Lá o Reich “não gostava de seus trabalhos, pois eram ‘pouco alemães’”, na América, a beleza de sua arte não pode ser maior que o poder exercido sobre ele pelas pessoas que se enxergam superiores a ele.
O Brutalista então se torna essa história onde Tóth é contratado para construir uma espécie de centro comunitário para um ricaço, Harrison Lee Van Buren (Guy Pearce), que quer homenagear a mãe falecida. Uma construção tão faraônica que parece maior do que qualquer sonho de Tóth. “Faraônica” também por uma outra razão que surge no final e fecha o ciclo de disputa de poder, dor e violência que cerca esse prédio no alto de um monte e que ainda acaba sendo refém de uma ligação religiosa cristã que completa a experiência. Tudo ali é significado e metáfora. Tudo ali é uma desculpa para construir uma mistura de disputa de poder com estudo de personagem.

O roteiro é de Corbet em mais uma parceria com Mona Fastvold, dupla que já tinha escrito o incrível Vox Lux (também dirigido por ele). E ambos os filmes têm algo em comum: Não são simplesmente aquilo que você espera. Como se os roteiristas procurassem uma estrutura que não se permite ser aquela mesma que os espectadores estão acostumados. Nada em O Brutalista é gratuito, tudo é uma peça desse quebra-cabeça, mas aquela peça que completará a imagem não vem na sua mão no começo, é preciso acompanhar o filme para ir desconfiando do que pode ser a chave para esse mistério enquanto é surpreendido e, só quando você já desistiu de procurar por aquilo, que ela é entregue para você.
Isso não quer dizer que O Brutalista é um filme complicado ou intrincado, muito pelo contrário, ele é simples em suas ideias e sentimentos. O problema é que são ideia pesadas e sentimentos ainda mais incômodos. Se o fundo do poço de Tóth parece não ter fundo, sua esperança por continuar construindo esse mundo mais belo a seu jeito, cortado em ângulos retos e muito cimento, não acaba. Toda possibilidade que ele tem de tentar dar a volta por cima ele abraça. Seus vícios, fragilidades, arrependimentos e traumas vão sempre com ele, mas, em um acerto incrível e humano do roteiro, isso nunca é o que destrói seus sonhos, pelo contrário, o torna mais complexo e dolorido de acompanhar.
O trabalho de Adrian Brody acompanha essa complexidade. Seu personagem parece reticente diante do poder que o enterra e o faz ser uma criatura inferior diante de sua existência, mesmo genial. Mas a grandeza de sua personalidade é sempre ligada a seus sonhos e seu trabalho, como se nesses momentos eles soubesse que sua situação menor de imigrante dentro de um país que só quer explorá-lo não importasse. Afinal, naquele lugar, não existe nada maior do que sua arte. Brody consegue ser frágil e poderoso dentro de um mesmo personagem com uma carga dramática que nunca permite que o outro lado suma completamente. Como uma corda bamba que você sabe que ele cairá mais cedo ou mais tarde.
Guy Pearce e Felicity Jones (no papel da esposa de Tóth) também completam o elenco e elevam a qualidade de cada diálogo e cena, mas O Brutalista é de Brody. E todos esses diálogos são ainda um espetáculo à parte, cada linha e ideia que parecem perdidos em algum tipo de digressão, acabam sempre em uma firmeza e precisão cortantes.
Ainda assim, talvez pela sua velocidade mais lenta (mas nunca estagnado e contemplativo), O Brutalista pode soar pretensioso com suas mais de três horas e meia e uma trama que parece que não vai chegar a lugar nenhuma. Mas talvez isso faça parte do objetivo maior do filme, aquele de fazer o espectador mergulhar com esse personagem em um lugar que incomoda, pois tudo parece ir contra ele e onde até os momentos de êxtase parecem determinados a quebrarem ainda mais a imagem desse gênio. Uma estrutura que engana ao fingir que não está chegando em lugar nenhum, mas que está apenas colocando as vigas, estruturas e pesadas paredes dessa trama.
Em um epílogo pouco interessante, porém necessário, a própria obra do tal centro comunitário e explicado em seus detalhes mais sórdidos e perversos, afinal é um local “abençoado por Deus”, mas que recorre às dores de uma guerra que é ainda mais perversa. Em nenhum momento isso é discutido durante o filme, afinal, um diálogo expositivo desses não quer estar no filme para mastigar uma ideia. Nada em O Brutalista está lá para agradar o seus público com algo mastigado e fácil. Um filme gigante com personagens ainda maiores e que quer desafiar quem está do lado de cá da tela.
Se isso soa pretensioso, tudo bem, talvez essa seja a ideia mesmo e, de vez em quando no cinema, esse tipo de pretensão é bom para desafiar o status quo e mostrar o quanto é possível ir além daquilo que todo mundo está acostumado. Se o bratulismo era minimalista, angulado, monocromático e bruto, mais do que isso ele era um movimento que desafiava e não deixava que aquilo que era dito como belo imperasse sem alguém ao seu lado mostrando o quanto é possível ser diferente e, ao mesmo tempo, tão belo quanto ele. O Brutalista faz o mesmo, doa a quem doer.
“The Brutalist” (EUA/UK/Can, 2024); escrito por Bradu Corbet e Mona Fastvolt; dirigido por Brady Corbet; com Adrien Brody, Felicity, Guy Pearce, Joe Alwyn, Raffey Cassidy, Stacy Martin, Isaach De Bankolé e Alessandro Nivola