É lugar-comum pisar nas conquistas das outras pessoas quando elas se tornam bem-sucedidas demais. Uma maneira clássica e bem-vista de se fazer isso é colocar os “valores humanos” acima das virtudes individuais da pessoa atacada. Usando um malabarismo dialético joga-se fora ou minimiza-se todas as adversidades pelas quais a pessoa passou para chegar onde está, e se exalta as dificuldades da vida de outra pessoa que se quer defender por comparação. Essa outra pessoa é a chamada vítima.
Em O Chão Sob Meus Pés essa construção dialética ganha um contorno tão sutil que o filme precisa da ajuda do espectador para interpretar e descobrir quais seriam esses “valores humanos”. Mais difícil ainda, porém, é constatar que eles seriam de alguma forma superiores às conquistas e à felicidade de uma pessoa.
A história é o enredo clichê da protagonista tentando conciliar sua vida profissional com a parente suicida que vira um incômodo. A parente no caso é a irmã mais velha, que após a morte da mãe desenvolve um transtorno psicológico que a impede de ter uma vida independente. O filme nos coloca na história no momento em que fulana teve a mais recente recaída, tomando seu recorde de calmantes de uma só vez (“120 comprimidos!”) e indo parar novamente na ala psiquiátrica que se acostumou a habitar, e de onde desenvolve narrativas paranóicas sobre persequição e maus tratos que compartilha com sua irmã mais nova.
Como iremos observar de maneira tragicômica, quando um dos pacientes malucos a aborda se apresentando como o doutor responsável pela irmã, a loucura genética que ambas provavelmente compartilham possuem similaridades que nossa sociedade tende a selecionar por pura convenção.
E a irmã mais nova, a escolhida pela sociedade como normal, Lola, é a bem-sucedida da família, sendo que a única família que lhe restou é essa irmã. A história do filme a coloca no momento em que sua participação é vital em um projeto onde trabalha, e ela precisa pegar inúmeros voos para visitar rapidamente a irmã e voltar para o trabalho. Sua chefe e ela são amantes, e ela tenta compartimentar sua vida em profissional, pessoal e outros, pois faz questão de manter o profissionalismo no escritório ao mesmo tempo que mantém sua relação e a existência de sua irmã em segredo.
Deve ser muito difícil habitar a mente de uma pessoa como ela, e um dos objetivos do filme é demonstrar como dadas as devidas ressalvas é muito fácil confundir uma executiva de sucesso completamente normal e uma esquizofrênica paranóica.
O Chão sob Meus Pés é um filme austríaco, dirigido por uma mulher, Marie Kreutzer, em seu quarto longa para o cinema que será o primeiro a ser lançado no Brasil por ter sido indicado ao Urso de Ouro em Berlim. A visibilidade das diretoras mulheres vem aumentando em todo mundo, mas este é um filme que mostra como o machismo no mundo executivo não retrocede jamais; apenas muda de formato.
Uma das frases que comprova isso é quando um cliente começa a dar cantadas em um restaurante e, finalmente contrariado ante às negativas de ser “alvo”, finaliza: “você sabe, outros homens já colocariam a mão em suas pernas por debaixo da mesa”.
Acuada por todos os lados e incapaz de conseguir cinco minutos de paz, a percepção é de que toda a vida de Lola está fragmentada porque ela se acostumou a tratar de todos os seus desvios de normalidade como aberrações que precisam ser escondidas do resto do mundo, e essa mesma percepção se torna combustível para que ela alimente a sua própria esquizofrenia, quando passa a receber ligações fictícias da irmã.
A diretora Marie Kreutzer é uma mestre dos espaços. Ela nos convida a observar o mundo sob ângulos nunca vistos, e estou falando no sentido literal, de como ela coloca sua câmera em cena, gerando uma sensação de incômodo através da claustrofobia invisível dos ambientes naturalmente opressivos, como o prédio de um hospital psiquiátrico velho, representando a definição de loucura clássica que é incapaz de se curvar, mesmo que um pouquinho, ou as infinitas paredes de vidro do mundo corporativo, que se erguem como labirintos verticais cuja única saída é pular da janela. Kreutzer logo no início, meia-dúzia de cortes depois, e nenhum diálogo expositivo, já nos apresenta tudo que é preciso saber sobre essa personagem solitária, vista como desumana.
Valerie Pachner vive Lola através de de um raciocínio lógico que não se pode negar e a ausência completa de humanidade. Não é algo que você perceba de cara, mas vai se desenvolvendo conforme nós, espectadores, vamos através da compreensão, ou empatia, de por que sua vida pessoal é gerida como um negócio. Pachner consegue ganhar nossa confiança sem nunca ultrapassar uma certa distância de segurança para nos apaixonarmos por ela. Nós entendemos o seu desespero interno quando ela acorda no susto pela manhã, mas este é o único momento que ela se revela. São décimos de segundo de um filme de quase duas horas. A atuação de Pachner é um exercício de auto-controle de quem está liderando uma criatura quase autômata e cujo único desejo é se tornar este robô à prova de adversidades.
Por isso que as cenas de sexo com sua companheira e chefe são tão assépticas. É como se ambas tivessem limpado suas mãos com álcool gel antes e depois do ato, mas não por questões de higiene, mas para não se aproximar demais de um ser humano. O relacionamento entre as duas é estéril, mas não apenas no sentido literal. Como tudo no mundo corporativo, a relação entre elas é uma mera questão de dominação. Ou você é dominante ou é dominado.
E por isso a presença de tela de Mavie Hörbiger é quase ausente. Ela está interessada e Lola unicamente para seu prazer. É como um pet que ela adquiriu por um bom preço, mas é a própria Lola que deseja essa impessoalidade. Ainda assim, é importante notar que todas as decisões que a personagem de Hörbiger toma no filme a respeito da empresa nunca levam em conta a felicidade da parceira, o que seria visto em outra situação como um ato louvável por evitar nepotismo.
Porém, é justamente essa a dualidade cruel que está exposta: espera-se que Lola conquiste seus objetivos por ser capaz e não por namorar sua chefe, mas justamente por ter um caso com ela isso nunca acontecerá com legitimidade, pois os lobos do escritório estarão sempre prontos para lembrar o quão privilegiada ela é.
O Chão Sob Meus Pés está brincando a todo momento sobre as dualidades da vida, mas é uma brincadeira séria demais para levarmos a sério. É como se fosse uma mensagem definitiva e real sobre esse chão de realidade sob nossos pés, e não apenas um devaneio sobre a vulnerabilidade de nossas convenções sociais. Mas é necessário que as ideias do filme se vendam como definitivas para que o espectador compre a ridícula mensagem de que é importante levar em conta as dores do outro antes que sejamos felizes.
“Der Boden Unter Den Füßen” (AUS, 2019), escrito e dirigido por Marie Kreutzer, com Valerie Pachner, Pia Hierzegger e Mavie Hörbiger.