Refilmagens, reboots e adaptações de livros já levados inúmeras vezes para os cinemas não são, necessariamente, uma coisa ruim ou sinal da falta de criatividade da indústria. Se muitas vezes tais filmes se mostram apenas mais do mesmo, por outras, nos deparamos com obras que identificam uma nova forma de contar uma história já conhecida, um ponto de vista até então pouco explorado, um gancho que transforma o familiar em novidade. É o caso deste O Homem Invisível, escrito e dirigido por Leigh Whannell.
O cineasta volta às origens do personagem e constrói uma figura que não cede à loucura proporcionada pelo poder da invisibilidade, e sim que busca esse poder como forma de causar tormento. Mas o brilhantismo de Whannell encontra-se em outra mudança significativa: ele tira o personagem-título do posto de protagonista, que agora fica a cargo de sua ex-namorada, Cecilia Kass (Elisabeth Moss) e, com isso, reconfigura a clássica história de H.G. Wells como um conto sobre abuso, gaslighting e sobrevivência.
O Homem Invisível já demonstra sua força bruta em seus primeiros minutos — é admirável, e exemplo da maestria com que trata seus temas, que a primeira cena do longa se estabeleça como uma das mais assustadoras. Claramente depois de muita organização e planejamento, Cecilia consegue escapar da isolada casa de vidro que divide com seu (ex-)namorado, Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen); tensa a cada passo, pois se ele souber que ela está tentando fugir, jamais a deixará ir embora. Adrian tentava controlar cada gesto, cada comportamento, cada pensamento de Cecilia, como ela conta mais tarde para sua irmã, Emily (Harriet Dyer). O que ela vestia, o que fazia, quando saía de casa… Na visão de Adrian, tudo isso dizia respeito a ele.
Trata-se de um exemplo escancarado de um relacionamento abusivo, e o fato de o medo de Cecilia ser palpável durante sua fuga — unido ao fato de que, afinal, sabemos sobre o que se trata “esse homem invisível” — nos colocam imediatamente do lado de Cecilia. Whannell toma o cuidado de conduzir o filme todo sob o ponto de vista dela: sabemos o que ela sabe, vemos o que ela vê, sentimos o que ela sente. Nada mais natural, portanto, que Adrian seja uma força assustadora e sombria, uma figura medonha muito antes do que ainda virá pela frente.
Whannell não está interessado em fazer com que a audiência duvide de Cecilia em qualquer momento, por que disso o próprio filme já está cheio — seria fácil demais, óbvio demais fazer com que também o espectador compactuasse com o silenciamento de uma vítima de abuso. Enquanto nós, o público, sabemos exatamente o que persegue Cecilia, as pessoas à volta dela vão duvidando mais e mais do que ela relata. Assim, além de “louca” e “descontrolada”, ela torna-se também solitária e, mais tarde, “perigosa”.
Tudo isso por que ninguém acredita que Cecilia esteja sendo perseguida por Adrian depois de conseguir escapar, já que Adrian, aparentemente, se suicidou logo após perder a namorada. Cecilia declara que, na verdade, ele forjou a própria morte e continua atrás dela. “Ele é um gênio da óptica”, ela explica, “e seria capaz de arrumar um jeito de ficar invisível”. As pessoas falam para ela esquecer isso, deixar para trás, seguir em frente. Mas ela não pode, porque o pior pesadelo de um abusador é que sua vítima (re)descubra a vida livre que pode ter sem ele.
De início, Adrian — que, é claro, realmente arrumou um jeito de ficar invisível — sequer está interessado em agir como um vilão clássico de filme de terror, preferindo atrapalhar uma entrevista de emprego de Cecilia, por exemplo, para impedir que ela reconstrua sua vida. Aos poucos, porém, ele vai expondo mais e mais sua natureza violenta, tornando Cecilia mais e mais isolada… mais e mais enxergada como louca e perigosa.
E Whannell é, provavelmente, o cineasta que melhor aproveitou a invisibilidade de seu vilão para gerar tensão. Para começar, ele explora os vazios na tela com maestria — na primeira cena, por exemplo, há uma panorâmica que vai de Cecilia trocando de roupa para a fuga e um corredor vazio e de volta a Cecilia que é absolutamente agonizante. E o que falar da faca que surge diante da protagonista em um restaurante, e da revelação feita logo em seguida? Depois, ao longo do filme, quando a protagonista já entendeu que seu abusador continua a perseguindo, a tensão e o desconforto são constantes, pois se ele não pode ser visto, então ele pode estar em qualquer lugar — e esse entendimento, como é de se esperar, é sufocante para Cecilia. Não importa onde ela esteja, o que esteja fazendo, ela é consumida pela memória (e pela presença) de Adrian, o caçador que se recusa a largar sua presa. O vazio, assim, ganha peso.
Enquanto isso, a angustiante e melancólica trilha sonora conduzida por Benjamin Wallfisch também é utilizada com brilhantismo. Surgindo para aumentar as tensões já existentes e jamais para criar medos sem fundamento, Wallfisch sabe quais são os momentos de manter-se distante e também acerta em cheio ao entender, por exemplo, que a notícia que Cecilia recebe de uma médica é tão assustadora para ela do que qualquer outra coisa que tenha acontecido até então (repare, ainda, em como os acordes se “expandem” durante o plano final).
Absolutamente primoroso em seus aspectos técnicos e na forma com que transmite suas mensagens, O Homem Invisível também funciona tão perfeitamente bem graças ao trabalho da sempre fascinante Elisabeth Moss, tão hábil em mesclar fragilidade e força. Entendendo que Cecilia é, mais do que qualquer coisa, apenas… uma mulher comum (pois esta é a realidade: mulheres comuns sendo abusadas por homens comuns), Moss entrega-se totalmente aos momentos de maior fraqueza e desespero de Cecilia, que aos poucos encontra a coragem de enfrentar Adrian motivada pelo fato de que ela simplesmente não tem nada a perder — por diversos meios, Adrian vai tirando tudo dela, seus amigos, sua família, suas perspectivas para o futuro.
O Homem Invisível entende que Adrian não é um monstro, e sim um homem abusivo capaz de qualquer coisa para desacreditar sua vítima. Capaz de qualquer coisa para fazê-la achar que precisa dele. E que, no mundo misógino e patriarcal em que vivemos, o perigo espreita em qualquer canto. Ao tratar com empatia, originalidade e complexidade um tema tão necessário e relevante, Leigh Whannell estabelece este como um dos melhores filmes de terror dos últimos tempos — e exemplo perfeito de que nenhuma história é familiar demais quando há algo realmente novo a ser dito.
“The Invisible Man” (Aus/Can/EUA/UK, 2020), escrito e dirigido por Leigh Whannell, baseado no livro de H.G. Wells, com Elisabeth Moss, Oliver Jackson-Cohen, Aldis Hodge, Storm Reid, Harriet Dyer, Michael Dorman, Renee Lim, Benedict Hardie e Brian Meegan.