[dropcap]T[/dropcap]alvez uma das coisas mais difíceis para um cineasta seja repetir o sucesso de um filme de estreia celebrado por público e crítica. Aris Aster, de Hereditário, parece então pegar o caminho mais interessante em O Mal Não Espera a Noite: Midsommar para quebrar essa expectativa: fazer algo bem diferente e igualmente impactante.
O título diz respeito a uma popular celebração sueca ligada à chegada do verão, justamente na época do solstício, que é a tradução direta e poderia muito bem ser o nome do filme ao invés desse subtítulo ruim. Mas ele tem uma razão de estar lá, já que é nessa época que o sol praticamente não sai do céu, criando a impressão dos dias que nunca acabam.
Exatamente, Aster sai do escuro e sombrio Hereditário, para um terror absolutamente exposto sob um sol que não vai embora.
Midsommar também começa com uma morte impressionante, agora muito mais no terreno do perturbador do que do gore. O impacto é igualmente grande, já que a câmera de Aster parece não cansar de esfregar isso na cara do espectador, quase como um sadismo visual que só piora quanto mais chega perto do final do filme. Talvez esse seja o jovem legado desse diretor: trazer de volta esse terror que não tem vergonha de mostrar e te espremer na poltrona incomodado com o que está vendo.
Portanto, esqueça aquele “jump scare” preguiçoso do gênero, Midsommar é sobre construção de clima. Praticamente não existe imprevisibilidade nem surpresas na história desses cinco jovens que viajam para conhecer uma festa na Suécia, na aldeia de um deles. Em poucos segundos que o espectador coloca os pés na aldeia, com um bando de gente esquisita vestida de branco, qualquer um sabe onde aquilo vai dar.
Na verdade, Aster abre seu filme com um desenho dividido em cinco partes que, praticamente, conta toda história do filme, assim como as milhões de ilustrações que se espalham pelo vilarejo são dignas de qualquer spoiler. Junte isso a todos filmes que já lidaram com o assunto “desconhecido chega em vilarejo religioso” e você não tem dúvida alguma do acontecerá com esses personagens.
Essa estrutura é tão comum que deu origem a uma espécie de subgênero do terror, apontado por muito como “Folk Horror”, onde o ponto central da trama é sempre tradições pagãs, bruxaria e lugares na Europa onde isso não deveria acontecer. O clássico O Homem de Palha, de 1972 é quase sempre a lembrança mais viva do gênero.
O que isso tudo quer dizer é que você sabe o que vai acontecer com os cinco amigos, e mais dois estrangeiros que chegam lá com eles, por isso, a óbvia preocupação de Aster é, justamente, criar um clima perturbador e incômodo enquanto sufoca o espectador com pequenas informações, easter eggs e uma mitologia muito maior do que aquilo está sendo discutido na tela. Mesmo já tendo feito isso em Hereditário, em Midsommar isso é ainda mais complexo e desafiador.
Aster escolhe fazer Midsommar andar em um ritmo absolutamente cruel e próprio e que sempre te leva com frieza e lentidão para momentos chocantes e incômodos. A cerimônia de Attestupan parece não ter fim e empilha sobre essa impressão uma vontade de desviar o olhar antes do que vem a seguir. Nem a câmera do diretor olha para o lado, como muito menos a cena parece acabar antes de umas boas marteladas finais.
E talvez esse seja o “ponto sem retorno” de Midsommar. Acontecer ali o que você acha que vai acontecer, mas com um diretor aproveitando cada momento com um sadismo visual incrível (e divertido!), te prepara para o que vem depois. E acredite, pode até não ser tão impressionante, mas gera o mesmo desconforto.
E talvez essa seja a maior característica do cinema de Aster, esse desconforto mesmo diante do óbvio. Essa sensação de que o espectador não consegue desgrudar o olho da tela, mesmo com toda vontade de não olhar. Mais ainda, o desconforto que vem com a sensação de que alguns personagens não estão contando ao espectador tudo que sabem, deixando os detalhes sórdidos para os momentos sórdidos.
Midsommar espera por esses momentos com uma calma única, ao mesmo tempo, vai construindo esse mundo perturbador. Enquanto a noite não chega, todo horror parece colorido e bucólico demais, como se os pastos verdes estivessem sempre prontos para se tornarem um inimigo inimaginável. É inesperado e completamente diferente o resultado visual desse horror sob a luz do dia, criando uma sensação ainda mais estranha. O resultado disso na mão de Aster é um visual poderoso e sempre com composições de cena que extrapolam o comum. Talvez esquisitas em alguns momentos, mas nunca esquecíveis.
Quando decide mostrar o pesadelo de uma personagem, cria uma montagem sensorial e que beira o inconsciente sendo mapeado pelos seus traumas, deixando claro que é um sonho ruim, mas quando está acordada, tudo é real demais. Colorido demais. Puro demais. Esquisito demais.
O mundo vira de cabeça para baixo e o espectador fica desnorteado por uma composição certeira que prevê o que vai vir em seguida. Aster continua confundindo seu espectador com o óbvio, Midsommar é então essa “bad trip” alucinógena que afunda o espectador nesse mundo impecavelmente perturbador. Como se fosse uma linda flor que nasce de um cadáver putrefato. Impossível de desviar o olhar, lindo, mas ao mesmo tempo podre.
Talvez seja apenas sobre o fim do relacionamento dos dois protagonistas, ou somente aquela necessidade de purgar os atos profanos. Mas muito provavelmente seja meramente um filme sobre o que é necessário fazer de violento para que a beleza floresça.
Tudo isso para lembrar o quanto é possível manter o nível do cinema, a expectativa e o interesse, mesmo depois de um filme gigante. Midsommar é diferente de Hereditário, e isso faz dele igualmente imperdível.
“Midsommar” (EUA/Sue/Hun, 2019), escrito e dirigido por Ari Aster, com Florence Pugh, Jack Reynor, Vilhelm Blomgren, William Jackson Harper, Will Poulter, Mats Blomgren e Gunnel Fred