Não tenham dúvidas, se um dia alguém precisar salvar o terror, esse herói não virá dos montes de dinheiro e clichês de Hollywood. Ou melhor, nos momentos em que o terror precisou de salvamento, ele foi correndo até o colo de gente da França, Nova Zelândia, Japão etc. Mas o terror hoje não precisa ser salvo, mas se precisasse, talvez o Mal que Nos Habita estivesse na primeira fila para pular de cabeça nessa piscina de sangue como uma espécie de salva-vidas vindo de algum canto do inferno. Literalmente.
O filme argentino deveria ser reconhecido como um dos melhores filmes de terror desses anos onde surgiram tantos filmes que salvariam o gênero através das frases das campanhas de marketing. Mas não aqui. O filme escrito e dirigido por Demién Rugna não quer marketing, mas sim quer colocar seu espectador nesse mundo cruel, violento, mas, ao mesmo tempo, corriqueiro e cheio de personagens absolutamente humanos. O lugar perfeito de onde partir com um passo em direção a um desconhecido cheio de coisas nojentas e ferimentos brutais.
Mas o ponto principal de O Mal que Nos Habita está nesse lugar onde as pessoas enxergam algo como um inferno. É desse lugar que surge essa espécie de epidemia de possessão na Argentina. Como ela funciona ou de onde ela vem, pouco se sabe ou menos ainda importa. Mas ela está lá, e como os personagens fazem questão de repetir algumas vezes, fez com que as igrejas acabassem.
Pedro (Ezequiel Rodríguez) e Jimi (Demián Salomón) são dois irmãos que moram no interior, cercados da natureza, até que escutam dois tiros no meio da noite. Em busca de respostas, descobrem o corpo de um dos enviados do governo que cuidam das possessões, o que indica que alguém tomado pelo demônio está na região. O que é dito em uma normalidade muito mais perturbadora do que a figura purulenta que está “recebendo” esse mal.
O que vem depois disso é tanto uma história de zumbi repaginada, quanto uma construção de mundo que se diverte com cada detalhe dessa mitologia. A tal epidemia se alastra como uma maldade que contamina todos que tem contato com ela, mas não como uma doença e sim como a destruição do ser humano através dele próprio. Fica a impressão de que, se o Diabo em si ou algum demônio qualquer tivesse a oportunidade de ganhar essa guerra através dessa pandemia, seria assim que ele agiria. É nesse lugar de convencimento e imersão que O Mal que Nos Habita ganha o espectador.
Nesse lugar e na capacidade de ser cruel. O Diabo não é simpático e nem está nesse lugar pasteurizado do gênero. Portanto, os mecanismos de transmissão da pandemia são de uma inevitabilidade que não permite nem por um segundo que qualquer ponta de esperança rodeie os protagonistas. Pior ainda, quanto mais eles se embrenham nessa tentativa quase fútil de salvamento, mais o filme os coloca nesse lugar onde suas humanidades são testadas. Ambos personagens se descobrem diante dessa encruzilhada onde a maldade neles é testada, não por estarem contaminados, mas sim por serem o veículo perfeito para o que essa doença mais precisa.
É nesse lugar de decisão que os dois tomam o rumo da raiva e do desespero. É nesse retorno que ambos percebem o quanto perderam a luta e só lhes resta voltar para onde não deveriam ter saído. Mas esse mesmo mal estará para sempre com eles, principalmente, pois O Mal que Nos Habita não é apenas sobre uma epidemia de possessão, talvez seja sobre mais do que isso.
Em certo momento, outro fazendeiro não consegue encarar o seu próprio erro, agora através do olhar de uma cabra (possuída lógico!) e faz exatamente aquilo que o Diabo quer que ele faça. A sequência culmina em uma sequência que vai fazer o espectador gelar diante da calma com que a câmera observa uma morte envolvendo um machado. Mas o que está em jogo ali é muito mais que isso. É o mal que já habita as pessoas, independente de qualquer epidemia esquisita.
Talvez, há quem enxergue que o estopim da trama seja salpicado de uma certa xenofobia, afinal a família com o possuído parece ser apenas mais um grupo de pessoas pobres que chegaram no país em busca de uma chance e acabaram vivendo dentro da propriedade de algum rico fazendeiro. Do mesmo jeito, a solução inicial do tal fazendo com os dois irmãos beira a irresponsabilidade e o completo egoísmo, apenas afastando deles o problema. Mas a epidemia não está no possuído e sim neles próprios. São essas decisões horrorosas que carregam essa maldade para todos lugares.
Ao que tudo indica, Pedro não só está afastado da ex-esposa e dos filhos, mas sim deixou-os com os traumas violentos de um passado que aponta para mais do que uma separação pacífica. Mas ele não se importa com isso, e nem com a nova família da mãe de seus filhos, só se importa com seus filhos. O resultado é o mesmo.
É nesse lugar que talvez o diretor se sinta mais confortável. Nessa provocação que esmaga seus personagens e vai construindo pessoas falhas e que não conseguem entender suas responsabilidades diante do mundo aos seus redores. A personagem importante que poderia salvar a situação, não parece conseguir lidar com a ideia de que ela não é a pessoa mais importante do mundo, heroína de sua história e grande ser pensante no meio de um monte de estupidez. É sua certeza que a cega. É sua incapacidade de ser humilde que, praticamente, permite que o vilão consiga sair vencedor.
Um futuro que criará uma população de seguidores que enxergam apenas um salvador que olha para seus próximos como criaturas violentas e que matarão todos aqueles que não concordarem com suas certezas. Mais do que uma criatura coberta de sangue, uma ideia.
O Mal que Nos Habita poderia sim ser esse filme que serve para os fãs descobrirem algo que sai da mesmice chata que o gênero não cansa de ser perder. Não salvar, mas sim se permitir ser novo. Mas o filme argentino tenta ser mais do que isso, tenta olhar para o ser humano e entender, acima de qualquer zumbi, demônio ou possessão, que o problema está bem mais parte. O problema é esse mal… que já nos habita. Essa sensação de que as más decisões dos personagens não estão tão longe das nossas realidades. Talvez não fizéssemos nada tão diferente. E essa constatação é desesperadora. É nesse lugar que está o terror.
“Cuando Aceche la Maldad” (Arg, 2023); escrito e dirigido por Demián Rugna; com Ezequiel Rodríguez, Demián Salomón, Silvina Sabater, Luiz Ziembrowski, Marcelo Michinaux, Emilia Vodanovich, Virginia Garófalo, Lucrecia Nirón Talazac e Frederico Liss.
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