[dropcap]O[/dropcap] cinema nacional percorreu um longo caminho desde A Cidade de Deus, um filme que explorava o ambiente miserável, violento e corrompido de uma sociedade que ainda mantinha certa fé religiosa que lhes “garantisse” alguma forma de proteção, mesmo que alguns membros dessa sociedade fossem assassinos sanguinários. Agora, O Nome da Morte chega como um eco dissonante, que vem meio torto, mas que pelas suas virtudes técnicas, igualmente impecáveis, especialmente a fotografia, lembra como aos trancos e barrancos como o cinema brasileiro se desenvolveu através das décadas a ponto disso se tornar algo comum, e mostra também que a discussão sobre a pobreza, violência e corrupção pode adquirir diferentes formas, mas que se mantém firme e forte como um mecanismo simbólico de estudo social rico e fascinante.
Aqui a história também é baseada em um caso real, de um pistoleiro, Julio Santana (Marco Pigossi), desde o seu começo como um filho problemático morando no interior isolado de alguma região do Brasil que é fotografada como um refúgio paradisíaco pelo diretor de fotografia Azul Serra em momento inspirado. Sua família é pobre, mas não miserável. Simples, mas não relaxada. Eles rezam à mesa e agradecem implicitamente pela saúde e sucesso de seus filhos.
Podemos notar esse cuidados com os filhos pelo pai, que se preocupa com o futuro do seu filho mais lesado. Julio não consegue trabalhar em sua oficina, nem na lavoura. Se trata de um incompetente crônico, que gosta de ficar de namoro com uma garota local. Sua única esperança de “ser alguém na vida” parece vir do tio, Cícero (André Mattos), policial militar que visita a família como o membro bem sucedido da cidade. O tio fica impressionado com a pontaria do jovem, e comenta que isso poderá ser muito útil na sua função que, como eu já revelei no começo do texto, não é ser policial militar.
O roteiro escrito pelo diretor Henrique Goldman e por George Moura não se preocupa em deixar tudo verbalmente claro porque a direção de Goldman é visualmente cheia de significados que vão revelando, por exemplo, a real origem da prosperidade do tio. O esquema velado dos assassinos por encomenda e a suposta corrupção que ocorre na polícia militar sequer é citada, mas sentida intuitivamente ao notarmos o grau de hierarquia que se estabelece entre Julio, seu tio Cicero e o seu amigo que sempre o visita vestindo farda e quepe. Além disso, há um momento em que vemos toda a artilharia que o tio mantém em uma pequena salinha isolada do mundo e que lembra um arsenal. Sabemos que essas armas não foram adquiridas legalmente, e ninguém precisa nos dizer isso no filme.
Mas eis que Julio aprende sua primeira lição na profissão: “usar sempre a mesma arma”, o tio lhe entrega como um presente para seu novo cargo de matador por encomenda. Sua primeira morte é simples, de um desconhecido morando no interior. Aos poucos o contador que é mostrado no filme, de homicídios por ele realizados, vai aumentando. Aprendemos que com uma arma em um país desarmado ninguém faz muitas perguntas e ninguém vê nada. Há uma cena onde Julio e o amigo do seu tio se encontram onde uma patética e sutil placa de “não é permitido armas” se pendura entre os dois, simbolizando uma área neutra. Aliás, de símbolos o filme está cheio, certos e errados. E um deles diz respeito à religião.
Julio se vê cometendo atrocidades que com certeza são desaprovadas por seu Deus católico, e por isso em certo momento busca por redenção procurando saber quantos pai-nossos e ave-marias ele preciza rezar por cada alma que levou desse mundo. O padre precisa de sua confissão, então Julio nunca irá descobrir. Porém, conforme o filme avança e a história se desenrola, Julio e sua mulher mudam de religião, e o filme deixa claro, com as imagens de uma Estátua da Liberdade falsa de uma loja e o aspecto bem apessoado e diverso das pessoas que frequentam o culto, que até quando o assunto é o além-mundo há espaço para todo mundo obter sua paz interior, nem que seja vendendo sua própria alma (outro símbolo divertido é a placa do seu carro, NIC-9999; o 666 invertido cabe aí, e NIC pode ser diminutivo de Nicolas, o santo que deu origem à figura do Papai Noel, que sai presenteando os que se comportam bem; se divirta com suas interpretações).
O aparente equilíbrio de Julio na maioria dos momentos soa apenas como fachada da mente, pois ele tem frequentes pesadelos sobre ser castigado, e a religião é apenas mais uma máscara que ele e sua mulher utilizam para conseguir conviver com a dura realidade de sua profissão. Ele dorme com o dinheiro pago pelos seus clientes embaixo do seu travesseiro (outro símbolo), apesar do seu tio sempre avisar que não se pode levar suas vítimas no sono noturno. Apesar do tom sempre irreverente que o longa toma para com as pessoas que Julio encontra pelo caminho, onde o mais icônico é seu tio, é preciso aplausos para a forma com que André Mattos cria o tio Cícero em uma figura mista entre o tom bonachão de Hank da série Breaking Bad e o abrasileiramento dessa personalidade fácil, mas ao mesmo tempo moralmente duvidosa.
Enquanto isso, a atuação de Marco Pigossi e o arco de seu personagem denota os valores do filme. A estrutura ideológica que O Nome da Morte nos oferece flerta duramente com o processo de Julio se tornando e crescendo como um pistoleiro, mas nunca se admite colocar algum peso nas decisões deste indivíduo, apenas se resumindo em apresentar suas simples ambições de ter mais dinheiro (e sem deixar muito claro por que dinheiro é tão importante para ele). Julio sempre foi uma pessoa problemática que não teria nenhum destino bem-sucedido na vida, mas é movido pelas circunstâncias de sua família e de sua condição para encontrar pelo menos uma função no mundo. Não encontra.
Se trata de um fantasma marchando sem propósito, e o filme não o julga, apenas demonstra o peso carregado por ele. Ou seja, é um filme vitimista, covarde, que não contém valores que possam ser usados como inspiração. Apesar de ser um filme tenso, estruturado, bem fotografado, com um design de som impecável e sempre acertar o tom de sua narrativa, assim como o próprio protagonista da história, O Nome da Morte é amoral do começo ao fim. E isso o torna pobre por dentro, mas belíssimo por fora. E essa é sua principal diferença de filmes como Cidade de Deus, onde aí sim, o indivíduo prevalece.
“O Nome da Morte” (Bra, 2018), escrito por Henrique Goldman, George Moura e Vitor Leite, dirigido por Henrique Goldman, com André Mattos, Marco Pigossi, Marie Paquim.