“Quando as nossas contradições ficaram irreconciliáveis e o precipício foi escancarado?”, questiona, quase que de maneira retórica, José Eduardo Belmonte, diretor de O Pastor e o Guerrilheiro, um filme que explora acontecimentos reais do passado traumático na política brasileira através do pano de fundo dos conflitos particulares de seus personagens.
Levanta-se outra questão durante o filme: estaria o destino determinado pela luta individual e coletiva, ou a batalha apenas define o caráter de quem participa? O futuro já determinado vai sendo empurrado, como o fluxo de um rio, correnteza abaixo, pelas forças inevitáveis da História?
Para responder ambas as questões o longa caminha de igual para igual por duas épocas: os anos 70 com suas guerrilhas e perseguições políticas, e a virada do milênio, onde a releitura do primeiro passado é feita pela estudante Juliana, filha bastarda de um coronel que, com sua morte deixa para ela sua riqueza construída na época da ditadura. Uma herança carregada com enormes contradições ideológicas.
Mas não apenas a riqueza material é sua herança. Junto dos pertences do falecido Juliana encontra um livro que começa a ler, Memórias de um Guerrilheiro. Nessa leitura a estudante restabelece sua conexão com o passado traumático da família, sobre uma época mais dura, quando seu pai protagonizou parte da História como antagonista dos valores que ela defende.
É curioso como dá-se alto relevo a esta época de Juliana, já que as partes principais da narrativa giram em torno dela, mas ela acaba sendo mera espectadora, já que Miguel e Zaqueu, dois homens construídos com grande cuidado pelos três roteiristas deste projeto, é que são os protagonistas de fato. O curioso é como as demandas mercadológicas do presente influenciam na distorção de narrativas claramente diversas da cartilha ideológica do momento.
Miguel se torna um guerrilheiro nos anos 70 e é preso por coincidência junto de Zaqueu, que quase 30 anos depois é um pastor evangélico na periferia de Brasília. Estes são dois personagens que demarcam toda a estrutura dramática de uma história multifacetada. Miguel é movido pelo amor à sua ideologia e se transforma em uma força da natureza, sem passado e mirando apenas o futuro. Enquanto isso, o Zaqueu do futuro passa pelo dilema que seu filho mais velho e mais ambicioso apresenta: a expansão da religião que tanto ama, só que se distanciando de sua comunidade, por vias políticas e midiáticas.
Ambos não deixam de serem idealistas, cada um à sua maneira. A parte mais forte do longa é o encontro desses dois como presos políticos, cada um cuidando de seus valores, mas se comunicando em diálogos inspiradores acerca da visão de mundo de cada um.
Repare que não há brigas nas conversas entre Miguel e Zaqueu, apenas troca de ideias e argumentos. É uma época em que as contradições convivem em paz. E lembre-se que o diretor José Eduardo Belmonte questiona acerca de seu filme. Quando esse precipício entre opiniões, antes coberto por uma camada de civilidade, foi escancarado? Acho que nós do futuro de quando o filme se passa já temos fortes indícios: o avanço da tecnologia e sua aparente conexão entre as pessoas.
Distantes da era dos celulares, Miguel e Zaqueu convivem em paz. O sentimento do espectador também é de paz. Os celulares, apesar de já existirem alguns, não estão nas mãos de milhões de pessoas, nem as redes sociais foram criadas.
E este é o lado mais positivo de O Pastor e o Guerrilheiro: nos esquecemos de nossa própria época ao assisti-lo. As duas metades temporais pertencem ao passado e são observadas com um viés do presente que já acabou ano passado, com a transição de poderes em Brasília.
No entanto, é um filme melancólico, de certa forma, por não conseguir responder uma pergunta tão presente em nossos dias. E é um filme esperançoso, de outra forma, pois abre de certa forma um diálogo. Não com o outro lado, mas com o passado. Dialogar com o outro lado não é mais possível. O precipício foi escancarado e não há sinais de que um dia voltaremos a sermos civilizados.
“O Pastor e o Guerrilheiro” (Brasil, 2023); escrito por José Eduardo Belmonte, Nilson Rodrigues e Josefina Trotta; dirigido por José Eduardo Belmonte; com Johnny Massaro, César Mello e Julia Dalavia.
SINOPSE – A filha de um torturados da Ditadura Militar descobre o passado do pai e a história de duas de suas vítimas interligadas pelo destino