O ponto de vista de gente cretina

De tempos em tempos, uma discussão rasa toma conta das redes sociais, especialmente nas bolhas de gente metida a intelectualizada. São threads no Twitter, carrosséis no Instagram, textões no Facebook, minivideoclipes sem graça no TikTok e criadores de conteúdo fingindo responder definitivamente se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Para quem não é fã de requentar assuntos, a discussão é rasa, chata, repetitiva, boba. Tanta gente buscando atenção e se xingando com supostos argumentos de traição ou injustiça. Mas o importante é o engajamento, a gente sabe.

Dom Casmurro foi publicado em 1899 e é o meu livro favorito do Machado de Assis. Caso o leitor e a leitora não conheçam detalhes da sinopse e do contexto da obra, sugiro recorrer a um site chamado Google e recorrer à pesquisa, tarefa antiga e útil. Por mais que insistam em requentar essa refeição guardada na geladeira, o “traiu ou não traiu” não é a única questão importante do livro. O narrador-protagonista é um velho amargurado e o título da obra é um apelido que ele odeia.

Durante boas décadas depois do lançamento, falava-se em recordações de um injustiçado, um homem traído, um quase coitado. Em 1960, a publicação do livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis, escrito por Helen Caldwell, começou a transformar essa discussão: desde quando Bentinho era um narrador confiável? Quem disse que ele era o mocinho intocável da história? Vocês estão loucos de não levar em consideração a amargura como distorção da realidade para o Casmurro?

Se 1% dos internautas envolvidos no eterno retorno dessa discussão tiver lido a obra de Caldwell, será um milagre da natureza. E se nos meios digitais é tão raro enxergar nuances ‒ ou tudo é excelente, ou tudo é péssimo ‒, ainda me surpreendo quando brota do chão gente que ainda não aprendeu o óbvio: um protagonista nem sempre é bonzinho. Nem precisa ser. Já escrevi ficções narradas por personagens odiosos, de caráter duvidoso, desagradáveis. Nessa confusão entre eu-autor e eu-lírico (lembra das aulas de português na escola?), penso em Vladimir Nabokov e seu Lolita, de 1955: Humbert Humbert é o narrador não confiável da obra. E um tarado, um pedófilo. Lolita é incrivelmente bem escrito e guiado por uma mente doentia.

Em tempos de esvaziamento da interpretação de texto e de opiniões rápidas sobre qualquer assunto, é comum tropeçar em supostas análises sobre como filmes, séries ou novelas romantizam comportamentos inadequados. Porque o protagonista comete erros, porque o narrador não é perfeito, porque a história é contada por gente hedionda, porque esquecem que o mundo da ficção não é povoado apenas por gente tão legal, gente tão galera.

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Não gosto de ser o portador das más notícias, mas seres humanos têm defeitos. Muitos. E qualidades. Muitas, também, mesmo que a proporção seja menor que a nossa vontade. Em cursos de escrita, aprendemos que para desenvolver boas personagens não podemos abrir mão de nuances. De defeitos e qualidades. De erros e acertos. De muitas cores entre o preto e o branco. Uma personagem que só faz merda pode ficar caricata, enquanto aquela vomitando virtudes atrás de virtudes pode cair na chatice.

Vale para a literatura, vale para o audiovisual. O certo é o certo, o errado é o errado. Julgamentos variam conforme a nossa bagagem, os nossos valores. Isso está longe de ser uma condescendência para crimes cometidos. Ninguém vai acertar sempre, nem errar o tempo todo. E precisamos, todos nós, pagar quando prejudicamos o próximo. E assim caminha a humanidade.

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Dexter Morgan é o protagonista de uma série famosa da década retrasada. Um assassino em série que trabalha como analista forense na polícia. Ao longo dos episódios de Dexter, ouvimos sua narração, seus pensamentos, suas considerações sobre o mundo ao redor e como faria para se livrar dos crimes cometidos. Por mais que a gente se apegue ao protagonista, por mais que a gente até torça para ele se livrar das merdas feitas ao longo das temporadas, sempre esteve claro: somos conduzidos por um criminoso contador de sua própria história.

Tem o cretino do Walter White de Breaking Bad, lembra dele? Se você assistiu às tantas temporadas e não percebeu o caráter mais-que-duvidoso do protagonista, recomendo procurar ajuda profissional. Tem também o curioso caso do Capitão Nascimento, não só protagonista como também narrador (e um famoso narrador, diga-se) dos dois Tropa de Elite. Que ele tinha uma visão distorcida sobre violência urbana, estava óbvio até pela escolha da profissão. Que muita gente via nele um herói sem defeitos, normalizando o treinamento desumano que respinga nas abordagens abjetas, bem… talvez isso diga muito mais de nós, enquanto sociedade, do que de uma possível romantização da tortura escancarada ali, na telona.

Quem disse que devemos comprar a versão do protagonista? Quem disse que devemos, necessariamente, concordar com o narrador de uma história pelo simples fato dele ser o narrador daquela história? Outro caso de manual é do (500) dias com ela. Gosto bastante dessas histórias de amor contadas de um jeito não convencional. E assim como a discussão sobre Dom Casmurro brota na internet de tempos em tempos, o ócio ressuscita o papo sobre o Tom ter se iludido com a Summer e sobre a Summer ter dito que não queria um relacionamento com o Tom mas se casar pouco tempo depois. Enquanto uns a veem como vilã e outros o definem como um bobo-tóxico, poucos se atentam à complexidade das relações humanas. Podemos ser impulsivos e irracionais quando nos apaixonamos. Não custa lembrar que a história é contada por um Tom que se sente machucado e injustiçádo. É a versão dele, o ponto de vista dele.

Um narrador não tem obrigação de ser bonzinho. Um protagonista não necessariamente será um mocinho. Histórias podem ser contadas por filhos da puta. E podem ser boas, bem contadas, envolventes e divertidas mesmo sob o ponto de vista de alguém não confiável, sem caráter, mentiroso. E se você se identifica demais com um filho da puta, talvez também seja um filho da puta.

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Na internet, buscamos respostas prontas, rápidas e fáceis. Mesmo que os problemas sejam profundos e complexos. Digitamos nos mecanismos de buscas: o que é isso?, como fazer aquilo?, para que serve tal coisa?, como resolver determinada situação? Os algoritmos retornam com milhares de links em poucos centésimos de segundos. Quem paga mais chega primeiro na corrida do ranqueamento. Se possível, com uma explicação sucinta e mastigada, porque ninguém tem muito tempo para nada.

Sobra pouco espaço para a digestão. No conto A terceira margem do rio, um dos mais famosos do Guimarães Rosa, o título faz referência ao que não é visto, ao que sai do cotidiano e do lógico, à margem de interpretação que nos desequilibra em meio à rotina. Quanto melhor a ficção, mais espaço para a terceira margem do rio. Porque a boa ficção não é um texto escrito com a aplicação de técnicas de SEO, respondendo prontamente àquilo que procuramos.

Nem sempre as respostas estão ali, entregues numa bandeja. Quanto menos expositivos os diálogos, maiores as possibilidades de ruminação interna diante daquela história contada. Na vida real, vilões se dão bem. Ouvimos histórias de filhos da puta. Nos relacionamos com pessoas de caráter duvidoso e ouvimos suas versões de histórias delicadas.

Na terceira margem do rio, nem tudo precisa ser excelente ou péssimo. Na terceira margem do rio, tirar nota cinco permite passar de ano. É na terceira margem do rio que entendemos que mesmo as obras “necessárias”, tratando de temas importantes, precisam ser bem desenvolvidas sem condescendência, respeitando a inteligência do leitor ou espectador. Querer um mundo perfeito, sem ouvir o que vilões e protagonistas não confiáveis têm a dizer parece um traço de infantilidade. A ficção é fundamental, mas não é dela a obrigação de resolver os problemas do mundo.

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Pessoalmente, acho que Capitu não traiu Bentinho. O cara era inseguro e enlouqueceu com o passar do tempo. Um ciumento, obsessivo, lunático. Claro, a minha visão de mundo tem muito a ver com meu achismo. Porque, sim!, também é possível ter uma leitura enviesada para encontrar indícios do chifre de Maria Capitolina de Pádua Santiago. Seria até merecido, alguns dizem. Existem duas ou três cenas-chave capazes de deixar uma gigantesca interrogação na cabeça do leitor. Outra interpretação mais livre e elástica vê uma homossexualidade reprimida em Bentinho, que seria terrivelmente apaixonado por Escobar, seu melhor amigo. Pode ser, pode não ser. Depois de publicados os textos, não mais pertencem ao autor. A genialidade de Machado está numa terceira margem, antes mesmo de Guimarães escrever sobre a terceira margem. Se virem, briguem, se matem. E passamos mais de um século debatendo seu livro.

Somos humanos. Cheios de defeitos e qualidades. Mesmo os personagens não humanos são desenvolvidos com técnicas para causar identificação em nós, humanos. É importante e enriquecedor ouvir, assistir e ler histórias contadas por cretinos. Para enxergar a maldade, para desmascarar filhos da puta, para reconhecer o enlouquecimento, para se indignar com ciúmes sem motivo, para exercitar a empatia. Não é para se identificar com o narrador sempre, mas quando uma trama é apresentada sob o ponto de vista de gente cretina, fica mais fácil enxergar onde moram as nossas humanidades mais profundas.

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