[dropcap]S[/dropcap]eria um esforço maior ainda do que a jornada do personagem de Leonardo DiCaprio em O Regressso escrever um texto sobre esse filme e não perder (ou ganhar) parágrafos e mais parágrafos falando só sobre a genialidade do mexicano Alexandro G. Iñárritu. E isso sem o menor pingo de exagero.
O ganhador do Oscar por Birdman parece ter o único objetivo de surpreender seu espectador. Não com surpresas ou reviravoltas, mas sim com uma plasticidade incrível, um visual estarrecedor e uma complexidade que fará sua obra ser exaltada por algumas gerações. E mais uma vez, pode parecer exagero, mas não é.
Com seu planos longos (muito, muito longos mesmo) Iñárritu dá aquela impressão de que não terminará nenhuma de suas cenas com um corte enquanto seu espectador não estiver estupefato com o que está vendo. O Regresso abre com uma invasão de índios em um acampamento de um grupo de caçadores de peles que parece não ter fim, e cada flechada, tiro e golpe parece que irá ferir quem está ali no escuro do cinema tentando sobreviver em meio àquele caos. E a câmera do diretor de fotografia Emmanuel Lubeski continua ali, ligada, sem cortes, testemunhando esse mundo violento e cruel.
Lubeski que já pode se consideram um mago dos planos longos (e Planos Sequencias), vem de dois Oscars por Birdman e Gravidade, sem esquecer de seu trabalho inventivo em Filhos da Esperança. Lubeski ainda trabalhou com Terence Malick em A Árvore da Vida, experiência que se reflete exatamente agora com Iñárritu: Não existe plano de O Regresso que não possa ser resumido em uma obra de arte.
Iñárritu parece, justamente, beber na poesia visual de Malick para olhar para esse mundo belo e selvagem de O Regresso. A diferença aqui é aquela vontade citada alguns parágrafos atrás de surpreender seu público. Em um arroubo “kubrickiano”, Iñárritu “desafia” Lubeski e, consequentemente todos no cinema, a caminharem por esse mundo através da luz natural. Assim como Stanley Kubrick colocou seu Barry Lindon “à luz de velas”, o mexicano (e principalmente Lubeski) filmaram esse épico sobre vingança somente com a luz que o ambiente lhe propiciava, o que os colocou em um trabalho de nove meses e com pouquíssimo tempo por dia para filmagens.
E se esse detalhe técnico pode não parecer útil em termos de “análise crítica” (e de certa fora até não é), é partir de coisas assim que se entende o quanto O Regresso, mais que um filme incrível, surge na tela como uma experiência. Uma vontade de tentar entender até onde vão os limites do cinema atual. E Iñárritu não se cansa de testá-los.
São esses limites que também colocam em prova seus atores, e não por nada, cada um de seus filmes traz sempre atuações incríveis e inesquecíveis. E dessa vez quem sai ganhando com isso são Leonardo DiCaprio e Tom Hardy.
DiCaprio vive Hugh Glass um explorador do século IXX que lá por 1820 leva essa grupo de caçadores de pele em meio ao oeste selvagem dos Estados Unidos. Tudo começa a dar errado quando são atacados por um grupo de índios e os poucos sobreviventes acabam tendo que fugir em direção a um território mais ermo ainda. Hardy vive Fitzgerald, um ambicioso caçador que acaba ficando para trás para cuidar de Glass quando esse é atacado por um urso e acaba à beira da morte. Mas “Fitz” tem um plano diferente, que passa por matar Glass e seu filho. Para a infelicidade do personagem de Hardy, Glass não morre, e parte então em busca de vingança.
Para DiCaprio, assim como Tarantino em Django Livre e Scorsese em diversos filmes já o fizeram, genha um baita presente de Iñárritu. Glass sobrevive, mas entre esse arremedo semi morto e o homem pronto para sua vingança, é DiCaprio quem tem que se arrastar, mancar, congelar e murmurar durante boa parte de O Regresso. O ator então aproveita isso para criar um personagem real, que sofre e precisa passar por toda essa jornada enquanto busca sua paz. DiCaprio então é monstruoso no quanto se entrega e some por trás de Glass.
Do outro lado Hardy aproveita cada segundo em cena para provar o quanto é um dos atores mais versáteis e competentes de sua geração. Seu Fitzgerald é como uma força da natureza incapaz de compreender nada a não ser suas necessidades. Quase sempre encolhido sobre seus próprios ombros como um animal pronto a atacar, mas com um olhar odioso e carregado de uma dor por estar naquele mundo. O roteiro de Iñarritu e Mark L. Smith (que curiosamente vem do texto de terrores “Bs” como Temos Vagas) não olha para ele só como um antagonista, mas sim vai em busca de sua jornada, de suas motivações, de suas verdades. Que mesmo distorcidas fazem sentido e criam um personagem amedrontador e incrivelmente profundo.
Ao lado dos dois, o ruivo Domhall Gleeson tem muito menos tempo de tela, mas mesmo com pouco mostra o quanto funciona bem em qualquer gênero que lhe é oferecido e se destaca geralmente com pouco em mãos. Desde 2013, além de estrelar um capítulo da íncrivel série Black Mirror (o 1° da segunda temporada), foi protagonista dos dramas Questão de Tempo e Frank, completamente diferentes entre si, sem contar seu trabalho da ficção Ex-Machina” o General Hux de O Despertar da Força.
Mas como o primeiro parágrafo salienta em seu aparente exagero, O Regresso é mesmo de Iñárritu (e um pouco de Lubeski também!). E isso se reflete em seu característico ritmo lento, contemplativo e preciso. Que (como em todos seus filmes) observa o quanto a morte (figurativa ou não) pode mudar a vida de seus personagens, seja “vivendo-as” ou convivendo com ela. Ao mesmo tempo que de modo prático e forte, livra seu Hugh Glass das copas das árvores o quanto mais perto chega da liberdade, de sua vingança. De uma experiência quase espiritual que o carrega para um novo mundo.
Uma viagem que leva consigo seus espectadores no caminho de um cineasta que foge do comum e tenta a cada filme (e plano) ser mais incrível e épico, seja no velho Oeste, na Broadway, em Barcelona, México ou em qualquer outro lugar que Iñárritu resolver contar suas histórias.
“The Revenant” (EUA, 2015), escrito por Alejandro González Añárritu e Marl L. Smith, dirigido por Alejandro González Iñárritu, com Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhall Gleeson, Will Poulter