Dentro da cultural Iauki, um grupo de nativos americanos que ainda reside no norte dos Estados Unidos, pertinho do Canadá, quando um Iauki mata outro Iauki, o parente mais próximo da vítima tem o direito de amaldiçoar o assassino. À partir desse dia, o assassino, para expurgar o pecado, precisa aceita-lo, encontrar um cervo sagrado e sacrificá-lo antes que toda sua família morra por inanição. Caso o animal não seja encontrado, ele tem a opção de sacrificar alguém de sua família, ou entrar “nas sombras” e fazer um feitiço que quebra a maldição.
O Sacrifício do Cervo Sagrado, novo filme do cineasta grego Yargos Lanthimos poderia então ser uma metáfora moderna a esse costume Iauki, mas não é, já que os Iaukis muito provavelmente não existem e eu inventei todo primeiro parágrafo.
Na verdade, não inventei, pois o filme estrelado por Colin Farrell e Nicole Kidman trata exatamente disso, e não reclamem que não entenderam nada, já que eu consegui criar uma lenda Iauki só à partir do que acontece no filme. Entretanto, Lanthimos, assim como em seu mais recentes filmes, O Lagosta e o mais estranho ainda Dente Canino, está tão preocupado em desnortear seu espectador que aceita até a possibilidade de criar uma experiência que parece não ter pé nem cabeça.
O problema é que o pé e a cabeça estão lá, mas de um jeito tão sutil e sem explicação que grande parte do público vai achar melhor ignorar isso mediante a falta de informações críveis. Talvez O Sacrifício do Cervo Sagrado tenha uma base sobrenatural, talvez não tenha, talvez seja tudo uma grande coincidência, talvez apenas o destino amarrando suas pontas em busca do equilíbrio. Quer saber mesmo, não importa, basta aproveitar o clima e se deixar levar pela loucura de Lanthimos.
O filme conta a história de um cirurgião, Steven Murphy (Colin Farrell), que mantém uma relação esquisita com o jovem Martin (Barry Keoghan), que na verdade é filho de um homem que, três anos atrás, morreu na mesa de cirurgia de Murphy. O problema é que, ao s poucos, Martin passa a entrar mais e mais na vida do médico, até que um dos filhos dele tem uma doença misteriosa e ele descobre que Martin está por trás de tudo, pois quer que Murphy sacrifique alguém de sua família para compensar a morte do pai.
Pronto, está ai formado uma trama cheia de incertezas onde nada parece muito o que é e você não sabe direito o que pode ser. Parece complicado, e é. Murphy entra em conflito ideológico com sua esposa (Kidman), e aos poucos vai cedendo mais e mais diante do inexplicável. O que leva todos a decisões complexas e desesperadas.
Mas Lanthimos não deixa isso tudo por si só acontecer sem uma carga enorme de esquisitice. Sua câmera parece ter nascido para ser câmera de segurança, suas composições parecem buscar um tempo que incomoda diante da extensão, e tudo parece estar em um ritmo quebrado, deslocado e sem amarras. Seus personagens estão sempre beirando um incômodo moral que embrulha o estômago.
Murphy e sua esposa mantém uma relação que beira a necrofilia, ela, por sua vez, não economiza esforços para conseguir o que quer, nem que isso signifique uma cena de masturbação que vai além do aceitável e se torna torpe e violenta.
Mas talvez seja isso que Lanthimos queira mesmo fazer, criar o incômodo. Fazer seu espectador pensar naquela trama enquanto tenta ligar os pontos em busca de qualquer tipo de razão, isso, enquanto embaralha tudo com o desconforto e o desespero.
O Sacrifício do Cervo Sagrado talvez seja apontado como um daqueles filmes “para serem sentidos”, o que parece interessar aqui é fazer você se deixar levar por uma história que parece conter uma trama, mas na verdade fala sobre todas tramas possíveis, como uma metáfora, mas mais precisamente, uma “Aiukita”, como os Iauki gostam de dizer.
“The Killing of the Sacred Deer” (RU\Irl\EUA, 2017), escrito por Yorgos Lanthimos e Efthymis Filippou, dirigido por Yorgos Lanthimos, com Colin Farrel, Nicole Kidman, Barry Keoghan, Alicia Silverstone, Raffey Cassidy e Sunny Suljic