Adaptação da obra-prima de Erico Verissimo, O Tempo e o Vento, nas mãos de Jayme Monjardim, mantém a narrativa que se estende por várias gerações mas, mesmo com aparência de épico, está longe de fazer jus àquela que é provavelmente a mais importante obra literária gaúcha e uma das mais importantes do Brasil.
A longa história de O Continente, primeira das três partes da obra de Verissimo, aqui, preenche apenas duas horas de filme. Conduzida por uma Bibiana Terra já idosa (Fernanda Montenegro), ela conta a história de sua família desde que uma índia chega às Missões grávida. Em seguida, testemunhamos a chegada do já crescido filho desta índia, Pedro Missioneiro (o argentino Martín Rodriguez), à estância da família Terra, onde ele se apaixona por Ana (Cléo Pires) – o casal de avós de Bibiana. Acompanhamos, também, a mudança de Ana e seu filho, Pedro Terra, ao novo povoado de Santa Fé, onde se passa a maior parte da trama. Lá, finalmente, tem lugar o romance entre Bibiana (vivida na juventude por Marjorie Estiano), filha de Pedro Terra, e o capitão Rodrigo Cambará (Thiago Lacerda).
A significativa diminuição no número de personagens faz sentido em uma adaptação para o cinema, mas, aqui, não parece ser motivada pelo aprofundamento dos protagonistas. Com exceção do capitão Rodrigo, os outros personagens dependem apenas dos esforços dos atores que os vivem para que o público se importe com eles.
Thiago Lacerda, então, se sai melhor que seus colegas de elenco por ter em mãos o personagem mais complexo do longa, e faz de Rodrigo um homem despojado, bem-humorado (mantendo o sorriso mesmo em seus momentos de crueldade) e arrogante. Seu senso de humor se encaixa na história e, assim, ele protagoniza alguns dos momentos mais inspirados do filme, como quando revela seu amor por Bibiana ao irmão da jovem ou quando se “confessa” a seu amigo padre.
Já Bibiana, mesmo alçada à posição de narradora da história e vivida por boas atrizes em todas as fases em que a conhecemos (mesmo a brevemente vista Janaína Kremer Motta imprime força à personagem), não é desenvolvida pelo roteiro de Tabajara Ruas e Letícia Wierzchowski com o mesmo cuidado de seu par romântico. Dependendo apenas de alguns olhares sonhadores para demonstrar seu interesse pelo recém-chegado, Marjorie Estiano mal pronuncia meia dúzia de palavras antes de seu casamento com o rapaz. E mesmo que o interesse instantâneo dos dois fique óbvia através dos olhares que trocam, o longa poderia gastar alguns momentos trabalhando a relação dos dois antes de trocarem alianças.
E ela não é a única das ótimas personagens femininas criadas por Verissimo a não ser bem trabalhada nesta adaptação. Ana Terra também tem pouca oportunidade de expressar seus sentimentos e pensamentos (muito menos sua coragem) além de através de olhares assustados, confusos e sonhadores, tendo alguns momentos apenas após a morte de seus parentes, como quando enfrenta os castelhanos para proteger o filho. Seu romance com Pedro Missioneiro, da mesma forma, se limita ao casal trocando olhares e protagonizando montagens românticas clichês. Assim, quando Bibiana declama que o destino das mulheres Terra era “fiar, chorar e esperar”, a sensação é de que algo está faltando, já que não foi dado o devido destaque às lutas e sofrimentos daquelas mulheres.
Além disso, o aspecto histórico do Rio Grande do Sul, que permeia toda a narrativa, é tratado aqui de forma extremamente rasa. Ao invés de realmente adaptar a obra, houve uma tentativa de “encaixar tudo” e, portanto, pouco tempo é gasto com cada personagem e acontecimento.
Para piorar, tecnicamente, O Tempo e o Vento ainda apresenta diversas falhas. Os flashbacks explicados pela narração de Bibiana (explicados mesmo, já que quando não está soltando frases de efeito e outras para “justificar” o título, abusando de “tempos” e “ventso”, ela se limita a explicar o que estamos vendo na tela) resultam em uma estrutura episódica e formulaica (que soa casar no ponto exato para a já planejada exibição como minissérie da Globo).
Já Jayme Monjardim, não parece ter aprendido muito nos nove anos que se passaram desde o péssimo Olga, algo aparente desde os primeiros minutos de filme, quando a abertura apresentando à bela paisagem dos pampas gaúchas dura apenas tempo suficiente para começarmos a entrar no clima do filme antes de ser abruptamente interrompida; sendo que o diretor poderia ter deixado aquelas imagens crescerem e tê-las aproveitado para inserir o título do filme, por exemplo, ao invés de recorrer a um desnecessário titlecard que, novamente, quebra o ritmo já frágil da produção. Da mesma forma, as conversas entre os personagens se limitam a mostrá-los em close e a alternar entre plano e contra-plano.
E continuando nesse lado técnico, a fotografia de Affonso Beato mais do que abusa do pôr-do-sol que mergulha o céu no laranja ou no azul escuro e deixa seus personagens em contraluz (em certo momento, vemos três planos do tipo em sequência). Algo que, em produções épicas, nunca deixa de lembrar E o Vento Levou. O que sobre para a montagem, por sua vez, é apenas acentuar as falhas da direção de Monjardim, sem conseguir criar uma coesão entre as diversas subtramas e períodos, com quase todas as cenas terminando com um fade out, coisa que não reflete as possibilidade de uma trama que envolve as relações entre diversas pessoas e que se estende por um longo período, abrindo espaço para a tentativa de criar uma ou outra rima e trazer elementos recorrentes. Os poucos exemplos disso são a roca que, além do trabalho das mulheres Terra, também anuncia a morte delas por duas vezes, assim como a tesoura usada em trabalhos de parto, e que ainda surge no bom momento que ilustra o envelhecimento de Bibiana (apesar de ser praticamente repetido mais tarde, com o mesmo fim, mas com o uniforme de Rodrigo no lugar da tesoura).
O Tempo e o Vento, portanto, causa frustração por termos a frequente sensação (mesmo para quem não leu o livro) de que estamos diante de uma história e de personagens fascinantes a quem nunca nos é permitido conhecer devidamente. E não serve de consolo saber que pelo menos alguns dos problemas deste filme serão contornados na versão para as telinhas, já que fica claro que o objetivo final desta produção foi funcionar como minissérie global.
O Tempo e o Vento, escrito por Tabajara Ruas e Letícia Wierzchowski, dirigido por Jayme Monjardim, com Thiago Lacerda, Marjorie Estiano, Fernanda Montenegro, Cléo Pires, Martín Rodriguez e José de Abreu.