Oh, Canadá | Intenso e sensível a cada olhar

Entre o roteirista de Operação Yakuza e Taxi Driver e o diretor de Oh, Canadá não há apenas uma vida, mas sim diversas. Paul Shrader foi tudo nessas mais de cinco décadas de cinema, já experimentou de tanto jeitos e maneiras que é impressionante o quanto seu nome continua criando expectativas a cada filme que assina. Um nome que parece provocar a cada vez que é citado.

Mas se os seus últimos anos de cinema encaram esse lado inquieto, como em O Contador de Cartas e Fé Corrompida, Oh, Canadá parece ter o coração em um outro lugar. O realismo e a verdade continua em seus filmes, mas é como se ele estivesse lidando com um personagem com uma dor diferente, mais cruel. Mais crua e igualmente dolorida como em seu cinema, mas com um Paul Shrader menos sádico e cínico. Quase mais humano.

Talvez parte dessa humanidade venha também do material original do livro escrito por Russel Banks (“Foregone”), amigo de longa data e que descobriu estar doente, situação que levou Schrader a adaptar esse livro que, justamente, conta a história desse cineasta no Canadá que lida com um câncer terminal e aceita participar de um documentário sobre sua própria vida e suas lembranças, o que acaba se tornando essa história sobre memórias, abandonos, decisões e arrependimentos.

Shrader trata o filme como se estivesse frente a frente com um personagem que, no final de sua vida e diante dos delírios da doença, monte esse testamento onde suas memórias se misturam como em um mosaico de impressões e essas verdades que vão vindo à tona enquanto a câmera desse documentário olha esse personagem nos olhos. Richard Gere vive o velho Leo Fife nesse momento final em um trabalho delicado e violento, como se soubesse que ali é sua última chance de se livrar desses arrependimentos.

A inquietação e a provocação de Schrader faz com que Oh, Canadá não seja só um filme sobre memórias, mas sim um emaranhado de sensações onde tudo pode ser um exercício de narrativa além de uma experiência emocional. Jacob Elordi vive Leo Fife em uma fase mais jovem, mas sua presença por vezes é substituída pela do próprio Gere, como se as certezas das lembranças não obedecessem algum tipo de lógica linear.

Uma Thurman vive a esposa de Fife, mas também surge para representar essa paixão que move seu desejo na juventude, mesmo diante da tragédia. Como se tudo estivesse em uma mesma linha temporal vagando pelo delírio de um homem olhando para seus últimos dias não com remorso, mas como um combate contra seus instintos de contar as histórias que os outros ao seu redor querem ouvir. Diante daquela câmera ele tem a oportunidade de olhar para seu passado com uma clareza que o libertará.

Schrader vai encaixando todo esse vai e vem de flahsbacks com uma precisão absolutamente inebriante. Do lado de cá da tela, qualquer um vai entender o que cada um daqueles momentos representou para aquele personagem, tanto no presente, quanto em qualquer um dos passados que vai escorrendo pelo filme. É lógico que existe um assunto, uma dúvida, que perdura pela história até o final, a respeito de sua não ida para a guerra do Vietnã e sua fuga para o Canadá, mas isso pouco importa para Oh, Canadá. Até esse lugar chegar, o que se tem é um estudo de personagem profundo, emocional e penoso. Que se arrasta a cada mágoa que surge.

O cineasta ainda usa essa história para discutir não só o seu cinema e seus personagens imersos em seus pecados e vigores, como também sobre a eternidade da imagem, de quanto um documentário pode realmente ser a verdade, ou apenas eternizar algo que é apenas o que o ser humano por trás das câmera quer. Fife conta para a câmera uma história que talvez não seja aquela que ele viveu, assim como seus pensamentos escorrem por suas intenções silenciosas ainda com a preocupação de não expor as verdades daquele mundo. De tempos em tempos o personagem de Gere repete e salienta que está são, mas o significado disso se perde em meio às memórias quebradas dessa construção precisa de Schrader. Tudo se encaixa. Tudo faz parte dessa experiência.

Nesses mais de 50 anos de vida dedicada ao cinema, Schrader foi muita coisa, muitos cineastas diferentes dentro de uma mesma pessoa. O Shrader de Oh, Canadá parece ter encontrado esse equilíbrio perfeito entre a pujança de seus filmes mais violentos, agora levado a um lugar de emoções igualmente intensas e essa espécie de homenagem à obra do amigo Russel Banks, falecido em 2023. Um Schrader que não se repete como cineasta, mas que usa toda sua experiência para criar essa pequena obra tão carregada de emoções e que consegue levar o espectador junto até esse lugar tão potente.


“Oh, Canadá” (Can/EUA/Isr, 2025); escrito e dirigido por Paul Schrader, a partir do livro de Russell Banks, com Richard Gere, Uma Thurman, Jacob Elordi, Victoria Hall, Michael Imperioli, Caroline Dharvernas e Penelope Mitchell


Trailer do Filme – Oh, Canadá

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