[dropcap]A[/dropcap]kira Kurosawa tentou ser pintor antes de ingressar na carreira de diretor. Até o final de sua carreira, criou seus storyboards com base nesse formato, mas talvez a maior influência de sua veia artística esteja mesmo em seus trabalhos. Kurasawa pintava usando a tela do cinema e Os Sete Samurais é um desses exemplos entre tantos outros.
O diretor japonês dirigiu 30 filme e Os Sete Samurais é apenas seu décimo quinto, já tendo em sua carreira antes disso clássicos como Rashomon que o catapultou para o reconhecimento no ocidente depois de ganhar o Festival de Veneza. Mas são os “Sete Samurais” que talvez criem o mito Akira Kurosawa.
É nele que o cineasta se desafia a fazer seu primeiro “filme de samurais”, gênero que praticamente reinará no resto de sua carreira. Descendente ele próprio de uma linhagem de samurais, Kurosawa ainda ali, em 1954, muda a história do cinema de ação. Depois daquele momento onde o horizonte corta a tela ao meio e só é quebrado pelas silhuetas de um grupo de bandidos, nada mais seria o mesmo para a sétima arte.
Os vilões escuros, sem face, sem forma, sem detalhes, somente uma ideia de maldade correm em direção a um pobre vilarejo com o objetivo de saquear, pilhar e violentar os aldeões. O ataque iminente é cessado já que a safra do arroz ainda não terminou. Mais tarde um dos moradoras do vilarejo olha melancólico para uma plantação de arroz na cidade e se espanta “ele já está quase pronto para a colheita”, mas é interrompido pelo amigo “aqui na cidade eles crescem mais rápido”.
O trio de aldeões chegou a esse local movidos pelo desespero de conseguirem salvar suas famílias e o crescimento do arroz é o fim de suas esperanças com a chegada dos bandidos. A ideia deles é contratar um grupo de samurais para defender suas casas, mas o pouco dinheiro os fazem ir em busca de heróis que receberão o pagamento com suas honras. O que nem no século XV parecia ser uma ideia muito comum.
Movidos pelos ensimentos do ancião que lembra que “até mesmo os ursos saem da floresta quando estão famintos”, os três aldeões conseguem então juntar esses seis samurais, enquanto ainda contam com a magnética presença de um desgarrado e tolo guerreiro que os segue. E serão esse sete honrados samurais que irão enfrentar uma horda de dezenas de bandidos.
Nasce um clássico
E com isso em mãos, Kurosawa vai além de tudo que poderia ser esperado. Cria então um clássico que não só mudou a história do cinema japonês, como influenciou Hollywood e o cinema ocidental. Kurosawa não inventou o western, mas deu um outro rumo para ele quando os americanos olharam para Os Sete Samurais e um certo diretor italiano mais tarde refilmou Yojimbo (em Sete Homens e um Destino e Por um Punhado de Dólares). Mas o maior legado do diretor é mesmo artístico: é difícil imaginar que algo perto da enormidade de Os Sete Samurais volte um dia a ser feito.
Isso em todos os sentidos. Artisticamente falando, Os Sete Samurais é um desfile de pinturas, como se aquele Kurosawa pintor estivesse comandando um filme onde cada plano parece permanecer na tela tempo suficiente para que o espectador passe a apreciar aquilo como um quadro. Uma obra de arte efêmera a cada corte. Uma busca por uma verdade, tanto nos olhos de seus personagens e em seus menores gestos, como também na realidade onde tudo aquilo está acontecendo.
Os Sete Samurais custou algo em torno de meio milhão de dólares. Para se ter uma ideia, seu maior sucesso até aquele momento, Roshomon custou nem metade disso. Os Sete Samurais então estourou o orçamento quatro vezes, e por duas delas o Estúdio Toho, um do maiores do Japão na época, interrompeu as filmagens depois de discussões com o diretor, que em ambas deu as costas e foi pescar enquanto apontava para os amigos mais próximos que “eles já tinham investido dinheiro demais no filme, sabiam que eles iriam voltar atrás”. Obviamente, voltaram.
Os problemas de Kurosawa já começaram quando ele se recusou a filmar em estúdio, deslocando toda a produção para Tagata, na Península de Izu, onde construiu do zero sua própria aldeia. O diretor ainda decidiu filmar “Os Sete Samurais” com três câmeras, o que não era comum para ele (depois se tornou), mas naquele momento parecia o único modo de conseguir captar as complicadas coreografias das cenas de ação, com cavalos, multidões, espadas e correria.
Em 1954, Akira Kurosawa fez um filme que impressiona tecnicamente até hoje. Mas talvez seu encanto esteja em outro lugar.
Seu legado
Talvez a paixão que o filme desperta esteja dentro dessa incrível história e em como ela é contada. Kurosawa inaugura nela uma série de dogmas que foram carregados pelo cinema até hoje. De modo a quebrar o peso da tragédia anunciada, Kurosawa leva seus três aldeões até a cidade em um clima que beira o lúdico, como uma pequena comédia, já que a missão deles é tão improvável que a farsa da trilha de Fumiu Hayasaki é o único caminho a ser tomado.
E essa leveza ajuda a criar situações cômicas e sensíveis envolvendo esse três personagens que, nem bem precisariam ter tanta importância, afinal você já está torcendo por eles. Mas Kurosawa vai mais além em um esforço de desenvolver cada um que surge na tela, sejam eles ou os mendigos que em certo momento cruzam seus caminhos. Sejam em suas coragens ou em suas covardias, melancolia e desespero. Em certo momento, reunidos em uma pobre cabana escura e fria, em volta de uma fogueira, coadjuvantes de uma história muito maior se encontram, mas ainda assim todos com histórias e sentimentos.
Mas a referência que deixou para o cinema vem em seguida, quando os três finalmente conseguem contratar um samurai, e um por um os sete guerreiros que irão salvar sua vila começam a se formar. Sim, você viu isso em um infindável número de filmes de ação, guerra, faroestes e golpes, mas essa formação de equipe onde cada um tráz sua especialidade para uma batalha nasceu ali, no Japão, em 1954.
Kurasawa então junta entre os sete, aquele líder experiente e honrado, que sabe que a guerra é pacífica e usa a inteligência como sua principal arma. Sua apresentação enquanto corta o cabelo e resgata uma criancinha é digna de entrar para os anais do cinema, enquanto coloca em ação seu plano, mas não “estraga a surpresa”, deixando os três aldeões como espectadores desse espetáculo, correndo de um lado para o outro tentando encaixar as peças.
Os Sete Samurais então se formam diante de uma série de esteriótipos. Do jovem samurai vindo de uma família rica em busca de um mestre; do silencioso e mortal guerreiro, do personagem que tem a força bruta a seu favor; daquele que não erra nenhum golpe e assim por diante, até enfim chegarmos ao tolo.
O “sétimo”
Antes de serem sete, o primeiro tratamento da história nasceu apenas com seis samurais, com um dos maiores astros do cinema japonês na época, Toshiro Mifune, já até escalado entre um deles. Mas Kurasawa sentia que faltava algo, alguma coisa que pudesse romper a mesmice. E dai nasce o sétimo samurai.
Não que a história seja sobre esse personagem, nem de perto é, mas talvez seja ele que crie tamanha diferenciação dentro desse grupo homogêneo. E ninguém melhor que o próprio Mifune para encará-lo, que deixou seu antigo personagem de lado e mergulhou em Kikuchyio.
Bem verdade esse nem é seu nome verdadeiro, já que forja uma certidão de nascimento para fingir seu passado abastado e se tornar um samurai. Enquanto Kurosawa apresenta o líder dos samurais, Kikuchyio está lá, tomando a frente de todos, coçando a cabeça enquanto apoia em sua enorme espada tentando entender o que está acontecendo. Como um grande pupilo, Kikuchyio antes de qualquer coisa observa e aprende. Mas esse olhar lúdico convive com um ego que não lhe deixa pedir, ao mesmo tempo que tem que conviver com o preconceito de não ser um samurai. Mas sua coragem e sabedoria resolvem esses impasses.
Kikuchyio talvez tenha em mãos as melhores cenas do filme, como na chegada à vila, ou em como desesperado para provar sua coragem (e vencer um pouco do ciúmes) embarca em uma missão suicida. Mas também é ele quem encontra ali parte daquilo tudo que viu seu passado deixar para trás enquanto treina as crianças e mais faz papel de palhaço do que de samurai.
Um sétimo samurai que cresce diante dos olhos do espectador, já que seu personagem ainda está em busca de uma personalidade ele próprio. A cada passo da trama, Kikuchyio parece acrescentar algo a sua vestimenta, chegando até ao final onde está vestido completamente diferente, como se ainda estivesse em busca dessa identidade. Por outro lado, sua coragem extrapola completamente os níveis dos outros personagens, e enquanto prepara uma dezena de espadas a serem usadas na incrível batalha final, todos sabem que ali, naquele momento ele está prestes a defender não um vilarejo, mas sia sua honra, sua vida e a vida dos que mais perto chegaram de ser sua família.
Mifune então ganha de presente uma força da natureza, um personagem triste e perdido, mas com uma coragem e uma graça que o faz ser incrível e a altura de um dos maiores clássicos do cinema.
Sensível e tocante, Kurosawa ainda usa Kikuchyio como a representação perfeita se Os Sete Samurais, já que termina o filme olhando para as espadas enfiadas nas covas dos heróis que se foram na batalha enquanto os aldeões festejam uma vitória que na verdade é apenas um reflexo da real dor da batalha. Aquele lugar onde, realmente, ninguém ganham e só há perdas. Sorte do cinema, que pode ter em mãos uma obra tão completa. Mas sobre tudo isso, sorte nossa que Kurosawa não teimou na carreira de pintor.