Crítica de Palavras Que Borbulham como Refrigerante

Palavras que Borbulham como Refrigerante


A animação Palavras que Borbulham como Refrigerante chega à Netflix enquanto resgata a arte japonesa dos haikus, poesias curtas tradicionais há muito esquecidas e agora encarnadas na geração atual. O jovem que protagoniza o filme trabalha em um asilo e por isso tem contato com essa arte, ele também tem problemas de relacionamento e usa fones de ouvido para não ser abordado na rua. Ainda falando de música, seu sensei está em busca de um disco de vinil há tempos perdido. O objetivo do mestre em encontrá-lo é conseguir ouvir novamente a música que o fará se lembrar de algo essencial em sua vida.

Esses traços de um passado contemplativo encontram seu oposto na figura simpática e tão atual de uma menina tímida na vida real, mas que é uma influencer local gravando vídeos sobre assuntos que giram sobre ela mesma e suas reações. Ela acumula milhares de fãs, mas por causa disso não consegue admitir para eles que agora está usando aparelho nos dentes. Por isso ela usa uma máscara, algo igualmente atual. A referência à pandemia não é nada sutil, mas será esquecida e imortalizada ao mesmo tempo quando tudo isso passar.

Retrato da geração contemporânea com problemas de relacionamento e suas novas neuras e desafios, Palavras que Borbulham… suplica ao espectador que enxergue a poesia desenhada nesses traços desleixados (do desenho) propositadamente para representar os jovens relapsos que vemos todos os dias. O curioso é que falta esmero no trabalho do diretor Kyohei Ishiguro e a animação é justamente sobre isso. Sua obsessão em símbolos e em unir diferentes mundos e épocas apela para o sentimento mais presente hoje em dia, algo trivial e que animais conseguem realizar melhor que seres humanos: “reactions”.

Em uma época em que as reações valem mais do que a coisa em si e quem reage é mais importante que o conteúdo, o garoto se incomoda em recitar seu haiku em público porque de acordo com ele isso não se recita, “deve ser lido no papel”. Apesar de estar alinhado com as tendências atuais dos artistas de haiku em enfocar a natureza e a dualidade dos dois termos justapostos que formam o núcleo da mensagem, todos os haikus no fundo são “reactions” à moda antiga de um jovem que só tem essa forma de se expressar.

À primeira vista parece que recitação ou escrita de haikus está um nível acima da garota youtuber. Soa mais refinado, mas na verdade não é. As semelhanças são exploradas sutilmente no filme. Dois mundos se conectam em uma vídeo-chamada da mais inusitada envolvendo jovens de ambos os mundos, um ponto alto da trama, e filme propõe que sim, existe uma ponte entre os dois mundos. A comunicação buscada há gerações entre o clássico milenar e a novidade da última semana.

Bonitinho e bobinho, as virtudes de Palavras que Borbulham… está totalmente em seus traços e movimentos e seu uso das conexões que os símbolos sugerem. O sensei do garoto grita seus haikus porque não ouve mais tão bem. Uma garota aumenta o tom de sua voz em seus vídeos porque não há outra forma de tornar uma visita ao shopping algo fora do normal. Seriam os streamers subestimados em seu potencial comunicativo ou foram as poesias eruditas excessivamente superestimadas por estarem presentes na história do Japão e ser um patrimônio artístico e natural que consequentemente ganha sua aura de sagrado? Poucos sabem hoje que música clássica era entretenimento para as massas. Bom, ao menos as boas música clássicas. As ruins ficaram esquecidas nas salas de estudo mal iluminadas dos intelectuais.

Todas essas questões são fascinantes por si só e não precisariam de um longa-metragem de anime pop para existir. Infelizmente, para completar, no filme não são levadas adiante. Isso acontece porque o próprio filme é subproduto da geração que precisa ou almeja, como toda nova geração, ser relevante. Então a história acaba virando um romancezinho básico entre criaturas socialmente inadequadas: adolescentes. Na falta de um símbolo melhor, o filme apela para o cafona, mas ainda é fofinho para os emos de plantão. Quem não se emociona com dois tímidos descobrindo a magia de admirar um ao outro em silêncio? Não há haiku ou vídeo na internet que represente essa beleza oculta do cotidiano.


“Cider no Yô ni Kotoba Ga Wakiagaru” (Jap, 2020); escrito por Dai Satô; dirigido por Kyohei Ishiguro; com Somegorô Ichikawa, Hana Sugisaki e Kimberley Wong.


Trailer do Filme – Palavras que Borbulham como Refrigerante

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