Não é à toa que o cinema iraniano vira estereótipo de filme que a crítica adora: são os amantes da estética contra os amantes da emoção. No entanto, o clichê de filme iraniano reza de que ele deve ser parado, e não é isso que acontece em Pari, um trabalho tenso, compenetrante e que não nos deixa desviar o olho da tela nem por um segundo. Os únicos momentos para respirar servem como reflexão do que aconteceu até aquele momento, para logo seguir em frente.
Este é um filme sobre a busca de uma mãe (a “Pari” do título) pelo filho desaparecido, mas é tão mais do que isso que essa descrição soa injusta. É menos sobre maternidade e mais sobre as decisões na vida.
Pari e seu marido viajam pela primeira vez para fora do país e descobrem que seu filho, supostamente estudante em Atenas, nunca se matriculou. Mas esse é apenas o começo de uma história que vai evoluindo a textura social de uma Grécia à beira do colapso e que aos poucos coloca em evidência o real motivo do filme, o que lhe dá seu próprio título e motivo de o assistirmos.
A atuação de Melika Foroutan pode à primeira vista parecer ter apenas um tom, uma mãe atordoada, porém aos poucos vai se libertando de suas correntes culturais e se aproximando mais do filho, mesmo que ausente. É através das pistas que ele deixa no caminho, como o poema que introduz esta história e é repetido no percurso, que ela vai conhecer melhor o próprio filho. Além de entender mais sobre si própria no processo.
É tocante a composição de Foroutan, cheia de sutilezas em uma personagem que seria difícil de se conter, pois poderia estar desesperada pelo desaparecimento do filho, mas a catarse do filme está em admirarmos essa resiliência da personagem-título.
Em uma sequência do conflito entre policiais e estudantes, surge um epicentro emocional em que esta mulher ressurge simbolicamente do outro lado do fogo. Suas vestimentas antigas se queimam. Não poderia ser mais simbólico.
Do outro lado, uma mulher determinada a ir até o fim de sua existência pelo… filho? Não, nunca é pelo filho. A busca por ele move o espectador porque é simples para nós, que já vimos tantas histórias semelhantes. Mas o real motivo é mais profundo e não pode ser descrito senão a própria existência. Mais profundo ainda: o motivo pelo qual viver.
A direção de Siamak Etemadi rivaliza com as virtudes de sua equipe, pois é com a edição de Panos Voutsaras que o ritmo das cenas filmadas com uma câmera na mão nos deixa atordoados sem perder o rumo. São muitas esquinas e becos entrecortados, todos no escuro, mas a geografia dos cenários é tão bem trabalhada que, mesmo com os planos muito longos que giram várias vezes, é possível saber o sentido para o qual a ação caminha.
Não que isso importe, pois a impressão que fica é de desorientação, mesmo, mas o espectador se perder não porque a ação é mal conduzida, mas porque é tão bem conduzida nas mãos do seu diretor, que se torna a marca de um trabalho visual memorável.
O destaque fica por conta de toda a sequência envolvendo a fuga dos estudantes e a entrada de Pari neste mundo subversivo. Para os mais velhos, ele resgata memórias do que era ter o coração idealista e lutar por isso. Para os mais jovens ele extrai o essencial do seu movimento, qualquer um, que você esteja envolvido. E a sua eventual desilusão.
Mas, voltando às virtudes da equipe de Etemadi, é preciso ressaltar que a trilha sonora composta por Pierre Aviat não deve passar despercebida. Note quantos filmes dramáticos exageram nessa parte e nos jogam para sentimentos óbvios de degradação da cena, que se diminui ao nível de mero entretenimento. Aviat consegue comentar as cenas do filme sem torná-las óbvias. Acompanhando a sutileza nas descobertas de Pari sobre o filho e si mesma. Sua desilusão não é motivo para uma música triste, mas, mais importante que isso, sua virada por cima não é motivo de uma música que nos eleva.
É o poder da sobriedade em tons musicais. Somos arrebatados para um épico contemporâneo da vida comum sem precisar sermos levados pelo acompanhento sonoro. Nós desejamos ouvir as notas compostas para o filme, o que é uma diferença primordial com ouvirmos algo porque está no filme. Essa técnica de Pierre Aviat eleva até filmes medianos, como A Costureira dos Sonhos, mas aqui encontra um material à altura.
Enfim, o mais difícil de tudo é conseguir harmonizar cenas noturnas com tons de realismo. Eela não faltam no filme. Se não fosse a fotografia de Claudio Bolivar seria muito difícil entender a complexidade desse projeto e admirá-lo como se deve. Em nenhum momento o realismo trazido pela câmera na mão ou pelas sequências longas sem cortes é prejudicada por uma fotografia pedestre que lembra documentários. Isso colocaria tudo a perder em Pari, pois o objetivo não é soar realista, pois isso a história já é pé-no-chão o suficiente, nem imediatista, pois a correria da narrativa já nos diz isso. O objetivo é eternizar este momento de auto-descoberta da protagonista, que não está fugindo do seu passado, mas descobrindo, naturalmente, seu futuro. E sem a visão completamente límpida de Bolivar cena a cena, não teríamos o épico urbano que este filme pede.
Pari é um filme que começa sem muitas pretensões e termina nos arrebatando de uma maneira que é sem volta. Esta jornada interna através de uma sociedade grega em colapso e do choque cultural é construído com muito carinho aos detalhes. Acaba sendo um deleite para a crítica fã da estética, mas principalmente se torna um filme que fala diretamente ao público de valores indizíveis com palavras e que só o cinema pode nos trazer, independente da história que nos leve até lá.
E é por isso que este é um filme que desafia os estereótipos de filme iraniano.
“Pari” (Gre/Fra/Hol/Bul, 2020); escrito e dirigido por Siamak Etemadi; com Melika Foroutan, Shahbaz Noshir e Sofia Kokkali.
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