Pecadores | O sagrado e o profano ao ritmo do blues

Existe uma quantidade enorme de coisas acontecendo em Pecadores, novo filme de Ryan Coogler. Não um filme complexo e que tem sentimentos a serem discutidos e sentidos, como seu Fruitvale Station ou Creed, muita coisa mesmo. Um filme que precisa ser desvendado a cada esquina que ele dobra, mesmo que nada seja propriamente complicado, mas são tantas coisas acontecendo que é preciso ficar ligado até o último segundo de filme (incluindo os créditos) para ter a sensação de que entendeu tudo.

Portanto, Pecadores quase não é um filme sobre pecadores em si, muito menos sobre vampiros ou sobre o período dos anos 30 nos Estados Unidos com a Lei Seca e o mercado ilegal de bebidas. Também não é sobre a construção de lugares seguros em uma realidade pronta para te matar. Tampouco sobre música. Ou melhor, não é sobre nada disso, porque é sobre tudo isso e apenas a cena no meio dos créditos irá te confirmar isso.

Sem uma surpresa ou reviravolta, apenas a confirmação de algo que você já desconfiava, de que Pecadores é sobre esses personagens muito além daquilo que eles sofreram e enfrentaram. Mas é melhor ir por partes.

Primeiro você é apresentado a Sammie Moore (Miles Caton), tanto “in media res” (gastando meu latim!), quanto voltando um dia para acompanhar o filho do pastor se encontrando com os primos gêmeos, Fumaça e Fuligem (Michael B. Jordan), de volta à cidade natal depois de anos em Chicago trabalhado para Al Capone. O plano dos dois é inaugurar um “juke joint”, tipo famoso de lugar do sul dos Estados Unidos onde a comunidade negra podia curtir música, bebidas e jogos de modo um tanto quanto “informal” e ainda mais não legalizado do que a época permitia.

O problema são os vampiros. Simples assim. O que faz Pecadores mergulhar de cabeça em uma espécie de Um Drink no Inferno sulista onde o espectador desatento será surpreendido pela presença dos mordedores de pescoço sem muita cerimônia. Mas ainda tem mais coisas além disso, já que Coogler tem em mãos um filme que celebra um ritual muito mais antigo do que qualquer vampiro ou perseguição racial: a música.

Sammie não é só um jovem “bluesman”, mas sim um daqueles músicos que parecem ter a capacidade de enebriar seus ouvintes e levá-los para um lugar ritualístico que abre as portas da percepção. Levando isso para o literal, Sammie, ao tocar seu violão, abre portas entre o céu e o inferno, quebrando a barreira do tempo e espaço e se tornando uma espécie de farol para o Mal, aquele com “m” maiúsculo mesmo.

A cena musical onde Sammie “invoca” esse lado espiritual e várias figuras de todo tempo surgem para ajudá-lo nessa canção enquanto seu público dança hipnotizado até colocar o armazém abaixo em um único plano longo é, desde já, um dos maiores e mais arrepiantes momentos do cinema em 2025. Uma sequência onde o significado daquilo vai além da cena e chega nesse lugar de pertencimento daquelas pessoas que podem enxergar naquilo o único lugar onde a liberdade é maior do que a opressão. Como se uma direção de arte impecável, uma fotografia perfeita, uma trilha sonora maravilhosa e um cineasta incrível culminassem nesse momento onde você se recorda do que o cinema é feito.

A calma do roteiro para chegar nesse lugar é tão primorosa que o filme poderia chegar onde quisesse depois disso (sim, os vampiros já tinham “entrado” na trama, mas você entendeu!). Principalmente, pois existe um momento onde é possível discutir que a verdadeira intenção do vampiro Remmick (Jack O´Connell) não é se alimentar, mas sim ter Sammie para ajudá-lo a “voltar a sua Dublim”, mesmo que apenas “espiritualmente falando”. Coogler ainda lembra o espectador desse aspecto cerimonial da música com uma horda de vampiros dançando ao som de uma clássica canção irlandesa, como se hipnotizados por essa unidade onde todos ali são apenas um.

O discurso de Remmick passar por esse lugar de unidade, mas diante de uma comunidade negra em um país segregado, a possibilidade de igualdade sem que seja com seus realmente semelhantes é algo que não acontecerá e terá que ser discutido através do confrontamento (outra coisa que eles aprenderam com os anos de escravidão). Então haja estacas, tiros e alho.

E estamos falando de vampiros clássicos, com pouco ou nenhuma invenção para torná-los exclusivos daquele filme. Uma decisão importante para não atravancar o ritmo que está lá no alto quando os “sugadores de sangue” começam a interagir com os sobreviventes. Não há enrolação, você logo sabe o que pode matá-los e seus objetivos, entende o conceito de quase uma consciência coletiva e de que eles são algo como um Mal que divide os corpos com o pouco que sobra de seus hospedeiros. Como se cada vampiro tivesse uma personalidade própria e firme, mesmo agora com todos traços do vampirismo. Tudo sempre cumprindo o caminho mais fácil para que o espectador não perca tempo entendendo aquilo, já que tem coisa melhor para prestar atenção e aproveitar, com momentos incríveis como a montagem paralela dos vilões rezando o “Pai Nosso”.

Isso porque Pecadores se entende como um filme que leva ao limite a ideia de sagrado. Tanto no sentido espiritual, quanto naquilo que é enxergado como maior do que o mundano. O Pastor não tem a visão suficiente para entender o significado da música como ritual. As verdadeiras ligações entre os personagens são muito maiores do que o sangue em suas veias e sempre se olhando como suas experiências sendo aquilo que dita essas proximidades. A sensação de fazer parte de um todo, mas, ao mesmo tempo, entendendo que cada um é único e não deveria ser julgado por “pecados” além de suas compreensões. E se a possibilidade de metralhar um grupo da Ku Klux Klan não é sagrado, é difícil saber o que é.

Mas também seria irresponsável falar de Pecadores e tentar entender todas camadas e possibilidades sem tocar no assunto da atuação de Michael B. Jordan. Fumaça e Fuligem são tão diferentes quanto iguais, uma construção tão precisa e delicada que faz com que rapidamente qualquer um seja capaz de identificar os dois personagens sem qualquer tipo de dificuldade e sem nenhuma dica visual. É lógico também que Pecadores não tem intenções de fazer com que seus protagonistas sejam muito mais profundos do que a trama pede, então nada parece forçado e todas mudanças e motivações de ambos vão surgindo perfeitamente bem ligada à trama. É lógico também que o resto do elenco faz um trabalho incrivelmente acima da média, mas B. Jordan é mais uma vez espetacular nas mãos de Ryan Coogler (como já foi em Creed, Fruitvale Station e Pantera Negra).

Principalmente, porque Pecadores é um filme que entende suas intenções assim como B. Jordan e Coogler. Um filme que em nenhum momento é pretensioso e sabe que está discutindo liberdade e a magia no sentido mais pecaminoso e catártico. Um filme sexy, arrepiante e arrebatador sobre o quanto um momento pode durar pela eternidade, mesmo que sirva de ponto de morte e vida para todos seus envolvidos. Sammie consagra esse momento com sua música e depois disso, para nenhum dos envolvidos, nada mais será como antes, mas aquilo nunca será esquecido. É nesse lugar que Coogler quer levar seu espectador, nesse êxtase cinematográfico que ficará em sua cabeça por dias e dias mesmo diante do seu fim. Se é que existe realmente um fim.


“Sinners” (EUA, 2025); escrito e dirigido por Ryan Coogler, com Miles Caton, Saul Williams, Michael B. Jordan, Jack O´Connell, Andrene Ward-Hammon, Yao, Helena Hu, Delroy Lindo, Jayme Lawson, Haillee Steinfeld, Omar Benson Miller.


Trailer do Filme – Pecadores

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