[dropcap]B[/dropcap]aseado em uma história real. Isso é o que lemos no começo de Poderia Me Perdoar?, seguido de uma história que talvez fosse difícil de engolir se não nos fosse informado que tudo aquilo (ou boa parte) aconteceu.
Ou, o mais provável, o filme nos traz alguns acontecimentos mornos o suficiente para se tornar chato no meio do caminho, e como todo aviso de “baseado em uma história real”, ele pede desculpas ao espectador por não ser tão visceral se esta fosse uma ficção com alguma liberdade criativa.
Porém, o que importa é que o filme dirigido pela atriz Marielle Heller, cujo roteiro é assinado por outros dois atores, Nicole Holofcener e Jeff Whitty, convence do começo ao fim (com uma pequena ressalva no final que irei comentar abaixo) sem precisar de nenhum daqueles subterfúgios que tentam recriar a arte maior que a vida. Pelo contrário: é um filme simples, sutil e literário (há várias falas e pouca ação), que vai entregando os acontecimentos de maneira burocrática, é verdade, mas nunca apelativa.
A história é simples e poderia acontecer com qualquer um: a escritora bem-sucedida de biografias dos anos 70 e 80 Lee Israel (Melissa McCarthy) já não é mais tão famosa agora, em seus 50 anos, e para sobreviver começa a falsificar cartas de famosos e vender a colecionadores.
Se tornar uma biógrafa tão boa a fez ser invisível, o que é péssimo para os negócios, como sua editora conclui. Além disso, interessada em fazer um livro sobre uma comediante obscura cujo nome já esqueci, Israel está nitidamente em descompasso com o mundo real, o que já se torna óbvio em sua aparição em uma festa cheia de escritores de onde ela sai alguns minutos depois de ter bebido alguns drinks e levado dois papéis higiênicos usados do banheiro chique da anfitriã.
Por outro lado, seu conhecimento íntimo de alguns autores permite que ela extraia o melhor de suas já finadas personas e engane a maior parte do público interessado em guardar pedaços de papel que foram manipulados por tais escritores. Não fica muito claro o que tanto fascina esse fetichismo em particular, mas fica claro que antes de Israel surgir no negócio não fazia muita diferença se as obras assinadas eram ou não verdadeiras, o que nos diz muito sobre o estado da arte literária atual e seus escritores fantasmas de gente que já morreu.
Mas voltemos a Lee. Se você ainda não pescou a ideia hilária de uma escritora anti-social que escreve biografias como ninguém, não se preocupe: nem os criadores desse filme pegaram a sacada, e preferiram se fixar no lado tragicômico da situação atual de Israel, e não em sua persona contraditória. Essa não é a melhor estratégia para nos dar um pouco de empatia pela autora, mas ainda assim Melissa McCarthy consegue nos entregar uma pessoa que é sofisticada dentro de suas próprias limitações artísticas, e acaba fazendo pouco de si mesma em praticamente todas as situações do filme. Ela consegue até se tornar ridícula quando deveria levantar uma bandeira anti-machista (ou o que quer que o valha na cartilha política atual) ao comentar indignada que Tom Clancy vai ganhar uma fortuna pelo seu último trabalho.
Além disso, há um problema com seu inusitado amigo que se torna cúmplice de seus crimes de falsificação, o obscuro e gay Jack Cock. Interpretado com uma mistura entre bon vivant e decadente pela idade por Richard E. Grant, ele poderia muito bem não existir de verdade na história, pois ele se assemelha mais a uma muleta narrativa que um ser humano real. Ele faz lembrar o amigo imaginário de John Nash em Uma Mente Brilhante, pois aparece apenas para os propósitos de Lee (nem que seja ir para o bar).
Apresentando em sua reviravolta a única peça de um quebra-cabeças que parece exageradamente grande – o FBI? sério? – Poderia Me Perdoar é uma conversa semi-sincera sobre a autoria da arte, e parece utilizar seu plot apenas como isca para mais um drama sobre escritores fracassados.
Esse texto faz parte da cobertura da 42° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
“Can You Ever Forgive Me?” (EUA, 2018), escrito por Nicole Holofcener e Jeff Whitty, dirigido por Marielle Heller, com Melissa McCarthy, Richard E. Grant, Dolly Wells.