Logo no início de Punhos de Sangue vemos uma frase de Rocky Balboa sobre ninguém se preocupar com você. Balboa, personagem fictício criado por Sylvester Stallone baseado na história de vida do meio-pesado Chuck Wepner, dizia também que o que mais importa no ringue, assim como na vida, não é o quão forte você consegue bater, mas quantos golpes você consegue aguentar. E sim, ele aguentou muitos.
Punhos de Sangue praticamente documenta a vida de Wepner, acaba misturando ambas as visões sobre a vida, e no momento que achamos que o “Rocky Balboa real” não irá mais aguentar tantos golpes em sua vida é quando nos lembramos sobre a fala de Balboa sobre ninguém se preocupar. Um drama sobre quando a própria pessoa parece não se preocupar com o caminho que sua vida está levando.
É claro que sendo um filme sobre boxe, fica implícito que este não será um filme sobre boxe, mas sobre uma vida em seu auge e declínio, como tantos outros exemplos que temos no Cinema. Nesse caso estamos falando do cara que inspirou um dos personagens mais célebres do gênero, e não por acaso, o filme de Philippe Falardeau segue à risca o modelo consagrado em trabalhos como o próprio Rocky (o primeiro), e em vários momentos sentimos até o tom de homenagem.
A própria vida de Chuck Wepner recebeu duas inspirações do cinema, uma antes e outra depois da fama. Antes da fama ele se vê como no filme Réquiem Para um Lutador, onde Anthony Quinn interpreta, com muita propriedade, a vida decadente de um lutador aposentado procurando um emprego. Depois da fama ele se vê como sua própria versão cinematográfica em Rocky, Um Lutador. No entanto, a versão que Wepner adota de Rocky está mais próximo do mega-empresário do boxe Don King (citado no filme) do que das origens humildes do personagem interpretado por Sylvester Stallone.
Liev Schreiber é Chuck Wepner, e ninguém diria o contrário mesmo sem o conhecer. Ele é um lutador de origem humilde e que se aproveita de oportunidades conseguidas pelo seu agente de um clube local (Ron Perlman). Quando o conhecemos ele está no ringue com um urso famoso da televisão, e fica difícil descobrir que se trata de seu futuro eu, já que o sujeito parece viver uma sequência ininterrupta de altas e baixas, e Wepner parece apenas elevar ligeiramente a cabeça quando está por cima, mas se arrasta inconsciente como Anthony Quinn quando conhece seu próprio e inevitável declínio. Só sabemos que ele possui uma esposa e filha porque a vemos, já que Wepner, como narrador em off, aparentemente não está muito preocupado em falar sobre as pessoas próximas a ele, mas apenas sobre si mesmo, o que logo se revela uma ironia trágica da frase inicial de Rocky Balboa.
E por falar em ironias, Wepner além de adorar Réquiem Pra um Lutador nunca ouviu falar de Touro Indomável (Martin Scorsese, 1980), ainda a ser lançado, o que torna sua história tão inevitável quanto a história do cinema e do gênero onde inconscientemente ele se situa.
Estamos nos anos 70 como ele deve ser para esse filme, e é possível ter certeza disso, já que o trabalho de direção de arte e figurino nos transporta para uma versão não apenas correta da época com seus casacos coloridos, penteados exagerados e roupas de baixo risíveis, mas também ligeiramente exagerado para nossa própria época, o que nos faz lembrar constantemente de que esta é uma versão, ainda que fictícia, querendo soar documental o máximo possível.
Documental também é a abordagem do diretor Philippe Falardeau e seu diretor de fotografia, Nicolas Bolduc (O Homem Duplicado). Mesmo que este seja rodado como um drama ficcional, temos uma câmera ligeiramente trêmula com uma granularidade (o “ruído” da película) que lembra os filmes das décadas de 70. E como este é um filme sobre outros filmes, o jogo metalinguístico funciona em diferentes planos.
Conseguindo unir ficção, realidade, realidade e ficção novamente, Punhos de Sangue se mostra um trabalho incrivelmente coeso e que segue à altura dos melhores trabalhos do gênero. Há tanto drama (real, não maniqueísta) em seu núcleo que as músicas ligeiramente animadas e as cores sutilmente coloridas parecem tentar melhorar o clima durante a projeção. E assim como o comportamento auto-destrutivo de Wepner, elas não conseguem. E que melhor prova das virtudes desse filme quando, diferente de seu protagonista, nós não sabemos quantos mais golpes conseguiremos aguentar até o final?
“The Bleeder” (USA, 2016), escrito por Jeff Feuerzeig, Jerry Stahl, Michael Cristofer, Liev Schreiber, dirigido por Philippe Falardeau, com Elisabeth Moss, Naomi Watts, Ron Perlman, Liev Schreiber, Pooch Hall