Que horas ela volta? anda fazendo barulho por onde passa. Após levar prêmios em festivais importantes como o de Berlim e o de Sundance – e causar polêmica em um debate no Recife –, o filme continua colecionando elogios. Comigo não será diferente.
A produção brasileiríssima – dirigida por Anna Muylaert – conta a história de Val (Regina Casé), uma pernambucana que deixa a filha Jéssica (Camila Márdila) na terra natal para ganhar a vida como empregada doméstica de uma família abastada em São Paulo. Apesar de enviar dinheiro para que uma amiga crie a menina, por razões não muito claras, Val fica uma década sem ver a filha, até que Jéssica decide ir para São Paulo prestar vestibular. Chegando lá, a jovem balança o equilíbrio da casa, ao questionar as decisões da mãe e as barreiras invisíveis da relação de Val com seus patrões Bárbara (Karine Teles), Carlos (Lourenço Mutarelli) e Fabinho (Michel Joelsas).
Que horas ela volta? toca fundo na ferida que é a desigualdade social no Brasil, onde a empregada doméstica está presente em grande parte das casas de famílias de classe média e alta. Onde a ajudante da casa, apesar de ser “praticamente da família”, não come na mesma mesa nem pode desfrutar dos simples confortos do lar dos patrões. Afinal, ela sabe o lugar dela. Como diz a própria Val, esses “podes e não podes” a gente já nasce sabendo.
É isso que Jéssica chega para questionar, atravessando o limite da porta da cozinha e perturbando a “ordem das coisas” na casa. A jovem passa a comer junto aos patrões, consegue ser convidada a ficar no quarto de hóspedes e até cai na piscina junto a Fabinho e seus amigos. Tudo que seria impensável para Val – tampouco aceito por Bárbara.
Estes limites são demonstrados claramente pela direção de Anna Muylaert, que filma através portas, atrás de objetos, mostrando bem a divisão entre um mundo – às vezes, de maneira evidente demais, mas nada que prejudique o andamento do filme. Seus planos longos nas portas, a espera que algo aconteça, entregam tudo o que prometem e o foco nos detalhes da relação de Val com os patrões ajudam a criar o clima que Muylaert pretende: de estranheza e absurdo. Afinal, qual é o problema de comer um sorvete?
Aos poucos, com a influência de Jéssica, Val começa a tomar pequenas liberdades e é nesse tipo de sacada simplista que está uma das maiores qualidades do filme. Ações que poderiam não significar nada ganham proporção e deixam ainda mais na cara a disparidade entre os dois mundos e o absurdo que é essa relação: Val vive na casa da família, conhece todas as rotinas e vivencia a privacidade dos patrões; mas não pode passar da porta da cozinha quando eles comem se não for para servir, não pode entrar na sala se não for para limpar, não pode sentar na mesa se não for escondida. Uma das mais belas cenas traz Val entrando na piscina quase vazia, à noite, quando ninguém está olhando. Algo simples, mas com significado poderoso no contexto da história.
Que horas ela volta? é isso: simples e poderoso; intenso, mas pontuado com humor; inocente e cheio de crítica. É um filme de contrastes que traz sua observação bem colocada numa história que envolve, com personagens cativantes e atuações maravilhosas. Uma obra que, em sua simplicidade, atinge o objetivo máximo do cinema: se torna inesquecível.
“Que Horas ela Volta” (Bra, 2015), escrito e dirigido por Anna Muylaert, com Regina Casé, Helena Albergaria, Michel Joelsas e Lourenço Mutarelli