Talvez seja preciso discutir o limite da referência. Se você tem mais de 30 e poucos anos, não perca mais nenhum segundo de sua vida lendo isso aqui, junte mais duas ou três pessoas da sua idade (porque o preço está exageradamente caro, então passem a senha entre vocês e mantenham o distanciamento social!) e corram para ver Scooby! O Filme. Mas talvez não adiante esperar que seu filho ou sobrinha se divirtam tanto quanto vocês.
Mas será que essa é a intenção dos realizadores, um filme para os marmanjos? Difícil acreditar nisso, principalmente com o visual colorido explodindo na tela e o humor infantil de certas gags. Tudo bem, os “baixinhos” irão se divertir com o filme, com a aventura, com os personagens e o capricho no visual. “Mas quem são esses caras mesmo, papai?”.
Não Scooby, Salsicha, Fred, Dafne e Welma, esses ele deve conhecer, já que o pessoal da Máquina Mistério continua fazendo sucesso tanto em filmes que vão direto para as telinhas, quanto com uma série deliciosa Que Legal, Scooby-doo que teve temporadas até 2018. Mas e, por exemplo, o Capitão Caverna?
Isso não chega a ser um erro do novo filme, apenas um detalhe a ser discutido. Uma oportunidade para pensar até onde tentar agradar os dois públicos (“baixinhos” e os papais e mamães) é uma opção que funciona tão bem. Talvez se fosse focado nos “mais velhos” o resultado se tornasse mais eficiente para um público que tem preconceito de “ver desenhinho”, mas que talvez o boca-a-boca quebrasse isso (mais ou menos o que acontece com alguns filmes da Pixar). Em contrapartida, se fosse mais infantil, e deixasse esse público de fora, com certeza as crianças não iriam parar no meio do filme para perguntar quem esse cara com o “F” no meio do peito e esse cachorro que estica o pescoço.
Mas vamos por partes. Scooby! O Filme é dirigido por Tony Cervone, um cara que está envolvido em um monte de especiais de personagens da Hanna Barbera e Warner desde 2002, incluindo Duck Dodgers, Looney Tunes, um monte de coisas do Tom e Jerry e até o encontro épico dos Flintstone com os lutadores da WWE. E quem viu algum desses filmes/especiais deve imaginar o tom que ele traz para sua primeira grande produção cinematográfica. O clima é divertido, visual, empolgante, inteligente, bem-humorado na medida e objetivo, Cervone perde pouco ou nenhum tempo, o ritmo é intenso e a experiência passa em um piscar de olhos.
O roteiro tem um batalhão de gente metendo a mão, mas mesmo assim o resultado é minimamente focado e eficiente (o que é sempre uma surpresa). Começa com uma sequência extremamente bonitinha e divertida que mostra o primeiro encontro de Salsicha e Scooby, passa com leveza para a formação da Mistery Inc, ainda crianças, em um Halloween, desvendando um mistério meio sem querer e caindo em uma montagem de passagem de tempo que homenageia alguns monstros e episódios clássicos. E talvez isso bastasse para o marmanjo ficar feliz e curtir o resto da animação com o filho. Mas tem mais, e tudo em uma aleatoriedade caótica ainda mais divertida.
Depois de serem “afastados” do grupo de investigadores pelo Simon Cowell (aquele do American Idol), Salsicha e Scooby viram alvo de um batalhão de mini robôs assassinos, são abduzidos pelo Falcão Azul e seu companheiro Dinamite, o Bionicão enquanto são perseguidos pelo Dick Vigarista. O Capitão Caverna está bem mais para o final, depois de mais um caminhão cheio de referências que passam por easte-eggs que vão de Frankenstein Jr até Hong Kong Fu e até a Lula Lelé.
Sim, a Warner parece empolgada com a ideia um universo compartilhado mais colorido e com mais chances de dar certo do que seu DCEU: o HBCU (Hanna Barbera Cinematic Universe). E isso não está no campo do delírio, já que essa ideia já foi anunciada. O que é realidade também é que Scooby! O Filme, apesar de toda bagunça, funciona perfeitamente bem.
Parte dessa culpa vem, muito provavelmente, do batalhão de roteiristas que entende com maestria, não só a dinâmica entre os personagens, como valorizam as personalidades e chegam com ótimas surpresas. Esse novo Falcão Azul é incrivelmente divertido, assim como o envelhecimento do Dinamite cai com uma luva nesse cenário onde nada realmente heroico parece estar sendo feito, mas ao mesmo tempo tudo sempre dá certo. O que talvez seja a maior graça de Scooby e seus amigos.
O roteiro então aposta no detalhe, naquele momento ou frase que te fazem lembrar de onde vem esse material, ao mesmo tempo que não fazem com que só isso seja a fundação da trama. É lógico que o filme foca no arco de Salsicha e nele se sentir sozinho, mas todos ao seu redor tem uma jornada emocional e intelectual que fortalecem a história e a tornam universal, tanto para quem “pescar” as referências, quanto para quem estiver começando agora nesse mundo.
Tudo fica ainda mais interessante com o trabalho da Warner Animation, mesma dos filmes da LEGO e do recente Pé Pequeno. O visual é tremendamente acertado, não foge do “clássico 2D” do desenho, mas faz isso “crescer” na terceira dimensão sem perder a personalidade. Um cuidado que ainda sobra na direção de arte, que traz os personagens mais antigos em uma roupagem atual e que são um espetáculo à parte. E nesse quesito, a surpresa de dar de cara com essa “nova versão” do Capitão Caverna é um deleite para os fãs.
Para quem conseguir ver o filme no áudio original ainda irá dar de cara com um elenco com cara de megaprodução, o que demonstra ainda mais o quanto a Warner pretende investir nesse HBCU. E se seguir o cuidado, capricho e diversão desse Scooby! O Filme, as chances de sucesso são enormes. Já sobre o limite das referências, esqueça isso, sente com o baixinho, assista o filme, explique para ele ou ela todas as referências e divirta-se.
“Scoob” (EUA, 2020); escrito por Matt Lieberman, Adam Sztykiel, Jack Donaldson, Derek Elliot, Eyal Podell e Jonathon E. Stewart; dirigido por Tony Cervone; no original com vozes de Will Forte, Mark Wahlberg, Jason Isaacs, Gina Rodriguez, Zac Efron, Amanda Seyfried, Kiersey Clemons, Ken Jeong, Traccy Morgan e Frank Welker.