[dropcap]E[/dropcap]m meio à tragédia, a beleza. Se a Rua Beale Falasse poderia ser apenas a história do belo e intenso romance entre Tish e Fonny, que se conhecem na infância, se apaixonam na juventude e lidam com uma gravidez não-planejada. Mas eles são dois jovens negros vivendo no Harlem na década de 70 (não que as coisas fossem ser muito diferentes caso a história fosse ambientada nos dias de hoje). E, por isso, a existência deles e de suas famílias acontece em meio à violência, ao ódio e à intolerância.
Quando Tish (KiKi Layne) descobre que está grávida, o pai do bebê, Fonny (Stephan James), é a primeira pessoa para quem ela conta. Quando a conversa acontece, os dois estão separados por uma parede de vidro — ele está preso, condenado pelo estupro de uma mulher latina (Emily Rios) do bairro.
O diretor e roteirista Barry Jenkins, que adapta aqui o livro homônimo de James Baldwin, jamais coloca a inocência de Fonny em cheque. Não temos dúvida alguma de que o único “crime” do namorado de Tish é ser um homem negro — e de ter atiçado o preconceito de um policial branco local (Ed Skrein). E se a premissa de “homem é falsamente acusado de ter abusado de uma mulher” me incomoda na ficção quando o foco é na mulher fazendo tal acusação (o que, apesar do que muita gente acredita, raramente acontece na vida real), o mesmo não pode ser dito da acusação falsa sofrida por um homem negro, já que eles são, sim, fragilizados diante de uma sociedade e de um sistema racistas que não hesitam em enxergá-los como criminosos e agressivos antes de mais nada. Nesse sentido, tanto Baldwin quanto Jenkins fortalecem isso — e novamente acertam — ao estabelecer um homem branco como acusador.
Se Fonny sofre com o ocorrido, o trauma de Victoria Rogers, a vítima, é reconhecido e respeitado pelo filme. Quando Tish e sua mãe, Sharon (Regina King, fabulosa), em sua dor, tentam argumentar consigo mesmas que talvez o estupro sequer tenha ocorrido de verdade, o longa imediatamente nos entrega um embate doloroso e incômodo entre Sharon e Victoria em que, pela primeira vez, a mãe da protagonista percebe claramente o quanto o evento impactou não apenas as vidas de seus familiares e de Fonny, mas também de Victoria, que perde qualquer esperança de estabelecer um lar para si mesma e sua família em Nova York.
Mas o que habita o centro de Se a Rua Beale Falasse é o amor terno e palpável de Tish e Fonny. Se Jenkins já havia se mostrado um mestre nesse sentido em Moonlight, aqui ele bebe diretamente da fonte de Wong Kar-Wai — especialmente de sua obra-prima máxima, Amor à Flor da Pele — para traduzir a paixão nos olhares duradouros que os jovens trocam, na eletricidade de cada toque, na entrega total de cada abraço, de cada beijo, de cada noite juntos. E nos belíssimos closes dos rostos de Layne e de James, ora empolgados por tudo o que está por vir na vida deles, ora transcrevendo o peso de todo o sofrimento e medo.
Medo esse que aparece até mesmo em uma visita a um apartamento, em que os dois mostram-se desconfiados da simpatia exibida pelo corretor (Dave Franco), já que não estão acostumados a serem bem tratados por brancos. A serem simplesmente tratados como seres humanos.
KiKi Layne é uma revelação, comandando o filme com segurança e transmitindo com intensidade a doçura cada vez mais agredida de Tish. Ao seu lado, Stephan James transmite a paixão do rapaz que, mesmo vendo-se diante de uma realidade completamente diferente da que esperava construir, mantém a vontade de deixar sua marca no mundo.
A fotografia de James Laxton é igualmente fundamental para construir a sensibilidade e o peso de Se a Rua Beale Falasse. Banhado em tons vermelhos e terrosos, o longa ganha a intensidade e o calor que acompanhamos ao longo de toda a narrativa, enquanto ainda representa a capacidade para o perigo, o ódio e a violência presentes no mundo em que Tish e Fonny habitam enquanto jovens negros. Tudo isso ainda é embalado pela memorável trilha sonora composta por Nicholas Britell, que colore ainda mais esta obra primorosa em todos os seus aspectos.
Em Se a Rua Beale Falasse, a história de Tish e Fonny poderia ser somente uma história de amor, mas tal existência não é permitida para eles. E que bom que temos artistas com a sofisticação, a sensibilidade e a intensidade de Baldwin e Jenkins para transformar isso em arte.
“If Beale Street Could Talk” (EUA, 2018), escrito e dirigido por Barry Jenkins a partir do livro de James Baldwin, com KiKi Layne, Stephan James, Regina King, Colman Domingo, Teyonah Parris, Michael Beach, Aunjanue Ellis, Ebony Obsidian, Dominique Thorne, Diego Luna, Finn Wittrock, Ed Skrein, Emily Rios, Pedro Pascal, Brian Tyree Henry e Dave Franco.